Doutor Marco Aurélio Baggio
Trabalho Científico apresentado pelo candidato à cadeira nº. 96 da Academia Mineira de Medicina, em 11-07-1995.
O PSIQUISMO HUMANO
INTRODUÇÃO
Uma aula recorrente, dada e solicitada, ao longo de trinta anos de atividade didática, versando sobre o hipotético aparelho psíquico humano, foi gradativamente, ganhando subsídios, depurando, até vir a compor a sucessão de apreciação que aparecem agora, neste trabalho.
O autor indica o que é, de que múltiplas e desconformes partes constitui, como se articulam e sobretudo, como funciona este todo maravilhoso, conhecido como psiquismo humano.
Conhecimentos abalizados ainda que dispersos, provenientes de saberes tais como a psiquiatria, a literatura, a filosofia, a psicofarmacologia, a mitologia, a cultura ocidental contemporânea e a psicanálise, são postos para jambrar, compelidos a exiberem suas melhores contribuições para a composição de um novo paradigma, capaz de dar acolhida à multiplicidade de componentes que operam e saturam o psiquismo do homem urbano de hoje.
Na presunção de poder contribuir para um melhor conhecimento da natureza do ser humano, o autor submete este trabalho, humildemente, à apreciação deste egrégio sodalício.
A apreciação de colegas mais sábios contribuirá para expurgar exageros, corrigir faltas e, sobretudo, enriquecer conteúdos.
DISCUSSÃO E CONCLUSÕES
O ser humano é, basicamente, um animal biológico. Como ser vivo é animado pela energia proveniente da queima de glicose no ciclo Krebs. No Sistema Nervoso Central esta energia tem o nome de influxo nervoso. É responsável pela despolarização da membrana do axiônico, carreando mensagem.
Animal nascido precocemente, apenas um sistema encontra-se pronto, devidamente enervado e mielinizado ao nascer: a cavidade oral, a boca.
Dotado de três cérebros, o ser humano nasce aberto ao entorno, tendo que se fazer e se constituir no inexorável intercâmbio com as coisas outras que-não-ele.
Telencefalizado, o homem dispensa instintos: comportamentos pré-formados inscritos no código genético do animal, instruindo condutas e comportamentos adequados, plenamente adaptados ao habitat em que irá transcorrer seu ciclo vital.
Ao nascer, o ser humano tem um único instinto: o instinto oral de sedução. Mamar é sua forma fundamental de ligação. Depende de um outro generoso que se apresenta, a tempo e a hora, oferecendo-se como mamilo e como seio, dando sustentação, afeto e alimento. Neste contato, surge o prazer decorrente do saciamento da fome e do bem-estar da plenitude organísmica restaurada. Instinto oral transforma-se em pulsão. Pulsão do prazer. Pulsão erótica, sexual. Pulsão é vária, multivalente. Não tem especificidade. Topa tudo. Liga-se a tudo. Investe e reveste a multiplicidade de coisas ao alcance do petiz. Parte da pulsão sexual dispersa-se na delícia dos movimentos corporais do autoerotismo. Parte da pulsão erótic inteuje pela potencialidade da bolha psíquica, insuflando-a e acendendo-a. A energia libidinal da pulsão percorre os dispositivos do aparelho psíquico, realizando um portentoso trabalho, culminando com a psiquização do sujeito. Pulso liga-se a imagem, forma representação de coisa. Representação investida, catexizada de pulsão, toma-se signo. Baralho de signos busca n possibilidade de arranjo, alcançando significação e sentido. Aos poucos, pulsão investida em representação muda de qualidade, faz uma transição de fase, muda de nome, passa a ser chamada de desejo. Desejo é apetência. Quer porque quer algo qualquer. Acima de tudo, desejo quer sair do espaço restrito do aparelho psíquico. Precisa se expressar. È quando então desejo penetra no espaço transicional onde encontra o objeto externo. Desejo e objeto estabelecem uma transa, descompromissada e fascinante. Lá e cá, fora-dentro; eu, não-eu, meu-outro, consitutído-constituinte. No pólo distal do psiquismo, o desejo opera como apetência a experimentar todas as possibilidades do múltiplo simultâneo, presente no campo do mundo externo. Isto se faz nesta câmara especializada, chamada de espaço transicional de brinquedo. Brincando, a criança se pega cantando, sorrindo, fazendo, experimentando, falando, produzindo. Sem mais nem porque. Exprime-se. Existe.
Ao se envolver com o objeto o desejo opera nova transição de fase, muda de qualidade e passa a se chamar interesse. Interesse ativo do sujeito pelos objetos de sua relação e de seu investimento. Estamos então, em plena praça, no mercado, no campo de atuação e de participação da cidadania. O mundo externo é o grande campo de caça e de captura do objeto que dá descanso a busca inquieta do desejo.
No pólo proximal do psiquismo, a pulsão que provém do nível biológico é silenciosa e inaparente. Opera no modo processo primário de funcionamento psíquico. Acontece no campo do inconsciente. Já o desejo não. Provindo das transformações da pulsão do inconsciente, o desejo anseia por aflorar à consciência, aparecer a luz, com as características d modo processo secundário de funcionamento psíquico. Desejo busca J.I-mi, sistema neuronal de expressão corporal e lingüística. Liga-se ao objeto externo, incorpora-o, a ele se identifica, processa-o e expressa, a seguir, como produto pessoal de confecção. Psiquismo instruído pelo desejo torna-se capaz de participar dos negócios da polis..
Imbuído de repertório pessoal de interesses, o sujeito psiquizado, agora cidadão participativo, pode dirigir a seta de sua intenção no sentido de fazer efeito no mundo, escolher destino que mais lhe convém e, até, aspirar à transcendência. Intencionalidade treinada, depurada, vira vontade.
Chamamos catexia o investimento da pulsão sexual nas imagens e também nos objetos. Catexia de image: representação, signo. Catexia de objeto: objeto de desejo, objeto escolhido, preferido.
Pulsão sexual é daimon. É quente, áspera, alérgena, candente, perigosa. Sexualidade é daimônica. Deliciosa e temível. Apetitosa e nojenta.
O psiquismo nascente da criança, desde logo, não dá conta de operar bem com todas as vertentes da pulsão sexual. Parcelas candentes, perigosas, escandalosas, são colocadas forçadas num lugar – o inconsciente – para serem mais tarde, digeridas. Manter essas parcelas e essas quantidades pulsionais reprimidas e recalcadas anos a fio, dispende energia: conra catexias. Um exército policial tem que ser mantido ara sustentar o recalcado. Até o psiquismo adquirir condições de expansão para poder processar a sexualidade recalcada.
Como o desejo aflora á consciência e se liga ao objeto de sua predileção, no campo do mundo externo, o investimento de atenção e de cuidado é necessário para preservar o interesse do cidadão. Atenção consciente chama-se hipercatexia.
Vimos que o campo psíquico é complexo. Tem instâncias: inconscientes, preconscientes, consciente. Tem estruturas: Id, ego, superego. Tem qualidade: modos processo primário e processo secundário de funcionamento. Dispõe de sistemas especializados e nerônios. Detém uma ampla coleção de representações. Tem uma variável população de objetos internos. Tem fronteiras, alfândegas, censura, entre os sistemas. Tem funções de autonomia primária e mecanismos de operação psíquicos: funções de autonomia secundária.
Aberto e montado na dimensão corporal, biológica do ser, o psíquico distende-se, igualmente aberto, em direção ao mundo externo. Sua função é intermediar duas realidades díspares, duras, incongruentes: o biológico e o mundo externo. Função de composição, de articulação, de harmonização. Função de expansão das possibilidades convivenciais, função de inventiva e de criatividade humana. Ponte de ligação. Equalizador. O psíquico é o lugar de Encontro de demandas desconcordadas, onde entram em conflito – tese X antítese. Campo onde as diferenças são negociadas. E superadas. Suprassumidas. Suplantadas. Resolvidas.
A psicanálise interessa-se pelo estudo da porção inconsciente do psiquismo humano.
No campo psíquico predomina o princípio do prazer. Eros é o deus prevalente. Com freqüência, impedido de realizar, Eros comuta uma tecla e se transfigura em Éris, o deus grego da discórdia, da dispersão e da cizânia. O desejo enguiçando, assanha o sujeito, toma-se tensão, angústia, agressividade. Agressividade expande uma série nova de prerrogativas positivas ao sujeito. No entanto, para além de certa quota, a agressividade adquire independência e curso próprio, transmutando-se em destrutividade e violência. Hetero e auto dirigida. Agressividade é outra forma de manifestação da energia pulsional. Responsável pelo empenho, pela gana, pela garra, pelo denodo e pela persistência do sujeito nos campos de luta de seu horizonte histórico. Dela provém à iniciativa, a capacidade de correr risco e sustentar combate. Agressividade excessivamente contida, reprimida ou frustrada, transforma-se em desespero, em violência, transforma-se em destrutividade. O homem é um ser de construção e de desconstrução. A destrutividade geralmente acontece no intervalo entre o psíquico e o mundo externo.
Biologicamente sadio, psiquizado, cidadão interessado em sua polis, o ser humano adquire intenção ao dirigir seu talento e seu empenho em direção as possibilidades de sua liberdade. Elege o bem, busca o valor, escolhe seu destino. Sabe que ser é tornar-se. Aprende que a vida impõe ao ser, como mandato ético, ser-mais. Percebe-se capaz de aspirar o Espírito.
Dotado de pneuma – élan vital, de lagos – razão e de naUs – inteligência, é capaz de se tomar côo objeto de reflexão – synesis.
Experimenta-se uno, íntegro. Acostuma-se à verdade. Amável em sua existência, exerce o bem. Confeiçoa sua vontade, a partir da intenção reiteradamente acionada. Toma-se sujeito capaz de decisão própria. A seguir age como sujeito, instruído por um código pessoal de excelência.
Tem na arte e na criatividade uma vertente sempre aberta às infinitas possibilidades de confecção do novo. Desenvolve a filosofia como conjunto de saberes de boa qualidade sobre a vida, os outros e sobre si mesmo. Tem na religiosidade e prerrogativa de ser iluminado pela fé.
Desta forma, amplamente instruído e plenamente personalizado, constitui-se como pessoa, na integralidade de suas prerrogativas. Candidata-se à sabedoria. Abre-se à possibilidade de transcendência.
Este é o luminoso percurso oferecido pela vida e cada sujeito psiquizado.
Vale, se vale
Arete.
O animal com ente transforma-se em ser que individuo e se identifica.
O individuo torna-se sujeito psíquico. Participante cidadão.
Intencionado a constituir-se como si mesmo. Ele mesmo. Na unidade consubstancial de sua Ipseldade. Aberto ao pleno exercício de suas prerrogativas enquanto Pessoa. Esta ascende ao espírito. Elege destino e abre-se a transcendência, constitui-se em excelência de ser pura areté.
Ova – Leminiscata = Do vazio ao movimento perpétuo de Criação.
RESUMO
A partir das concepções de Freud acerca do aparelho psíquico, iniciadas no Projeto para uma psicóloga cientifica (1895), o autor desenvolve hipótese acerca da constituição do psiquismo humano.
Propõe que o psiquismo está composto de um suposto sistema neuronal y psi; é dotado de dois modos autônomos de operação de contém instâncias como o endógeno, o inconsciente e o Id; o ego, a consciência, o superego; os sistemas delta de memória e tau, de inteligência intuitiva.
O autor defende a tese de que a bolha de psiquilização do ser humano, de um lado, está voltada para a dimensão hipostásica da biologia, dura rocha constitucional. De outro, o psiquismo está aberto, em intercâmbio permanente com a quarta instância psíquica, dada pela realidade externa ou, mais amplamente, o mundo externo. Um importante dispositivo permite a troca de conteúdos, significados e afetos, entre o psíquico e o mundo externo, conhecido pelo conceito de zona do objeto transicional.
Por sua vez, o psíquico jungido ao mundo externo, criando os interesses do cidadão, tende a se tomar intenção de escolha, de decisão e de ação de sujeito. Escoltado por sua liberdade, o sujeito psiquizado elege destino, obra o bem e alcança a integridade e a verdade. Ascende desta forma àquela parte mais nobre do ser humano dada pelo espírito.
Na integridade de um ser biológico que psiquiza, atua no mundo e alça à espiritualidade, o autor propõe uma nova concepção abrangente acerca da pessoa humana.
Utilizando o método clínico – de examinar cada nível de evento com os dispositivos epistemológicos que se provaram mais adequados, Dr. Baggio demonstra como a energia vital sofre sucessivas transições de fase, mudando de qualidade e exercendo trabalhos ao longo do circuito da existência da pessoa.
O autor manifesta intenção de que esta sua forma de conceber o psiquismo humano, um século depois do Projeto… possa ser um novo paradigma para a intelecção do modo de funcionamento do cidadão adulto urbano moderno.
O Psiquismo Humano – Marco Aurélio Baggio
Data de publicação: 11/07/1995