Medicina e Literatura:- Joaquim Affonso Moretszohn
Palestra proferida pelo Acadêmico Joaquim Affonso Moretzsohn, em 29 de agosto de 1996.
O tema é de grande amplitude e muito atraente também para autores não médicos: Autran Dourado, não médico, escreveu, em 1988, “Neurose e Literatura”, considerando que a epilepsia de Machado e de Dostoiesviski nada tem a ver com Dom Casmurro ou com os pocessos de que a arte não é produto de nenhuma loucura. Diríamos “produto”, não, mas desde Erasmo que a loucura é uma arte… , assim como Aristóteles escreveu sobre um poeta de Siracusa que só compunha quando em estado de excitação, sendo incapaz de escrever um só verso quando recuperava a normalidade psíquica. E Diderot: “suspeito que os homens meditabundos tenham visão penetrante e extraordinária devido ao desarranjo da máquina cerebral”, e outro escritor não médico, Afonso Romano de Sant’Ana, recentemente, escreveu que “a literatura é uma loucura explícita ou implícita”. Diríamos também, nem tanto assim, mas semelhante… A essência da criação literária estaria relacionada com a capacidade da transformação do banal em extraordinário, como o fazem os deprimidos: a criação e a depressão envolvendo os mesmos neuro transmissores cerebrais, hoje tão bem estudados.
Mas Sartre vem com sua inquietante pergunta: “que pode fazer a literatura por aqueles que estão morrendo de fome”? Sempre se soube que nenhuma resposta alcança a profundidade da pergunta e aqui vem o latim: “medicus non litteratus, nec medicus nec litteratus”.
E Dom Lucas Moreira Neves, outro não médico, escreve, sempre bem, que há séculos cujo período tradicional de cem anos é bem maior, como o XIX que só terminou com Saravejo ou com a Revolução Russa, ao contrário do século XX que começou a perder seu rosto em 1945, dando lugar ao século XXI com a modernidade! Max Nordau, este médico, húngaro de nascimento, mas radicado em Paris, já diagnosticara ao final do século passado, a “síndrome de fim de século”: anti-semitismo, degeneração, histeria e drogas, tuberculose e sífilis. “Mutatis mutandi”! …
O médico Domingos José Gonçalves Magalhães, Barão de Araguaia introduzido pelo autor Miguel Reale em Figuras da Inteligência Brasileira, foi o verdadeiro criador do romantismo e dos estudos filosóficos no Brasil. Fatos do Espírito (1858) e A Alma e o Cérebro (1876) são duas de suas obras, cujo tema central, segundo Miguei Reale, é a relação entre a alma e o cérebro.
Médico, também na vanguarda do romantismo no País, foi Joaquim Manoel de Macedo, autor de A Moreninha (1840): “o amor vive de mistérios, de imaginação, de segredos, de dificuldades, de oposição e de jogos”. Em seguida outro médico, Manoel Antônio de Almeida inaugurava o romance urbano no Brasil, com Memórias de um Sargento de Milícias (1854). Antes deles, porém, o médico alemão, Karl Friedrick von Martius, que viveu muitos anos no Brasil, escrevera em 1830, Frey Apolinário, um romance do Brasil, antes, portanto, de A Moreninha, tomando-se assim o autor do primeiro romance brasileiro. Este médico alemão nos desperta para o médico holandês, Willerm Piso, que veio com Maurício de Nassau em 1648, e publicou Historia Naturales Brasiliae, tendo sido o primeiro médico que o Brasil conheceu. Outro médico com história semelhante a essa foi Garcia D’Orta português, que tendo seguido com Martim Afonso para a Índia em 1563, em Goa, publicou um livro sobre ervas medicinais, com grande sucesso na Europa. Ele escreveu também sobre a cólera, o que outro médico escritor, Axel Munthe, aborda também no famoso O livro de San Michele.
Agora voltando ao Brasil, encontramos um antigo médico literato, o primeiro “Nabuco”, aqui chegado (dizem que são descendentes de Nabucodonosor), Manoel Fernandes Nabuco. Chegou à Bahia em 1762, quando Salvador contava com 65.000 habitantes, sendo então a maior cidade da América. Nova Iorque e Filadélfia tinham 40.000 habitantes (A propósito, Londres contava com 1.000.000 de habitantes e Paris, com 500.000). Este médico publicou suas observações médicas, por cópias manuscritas. Escreve: “quanto horror me não deu o aforismo n° 1 de Hipócrates, a vida é breve e a arte extensa, a ocasião repentina e apressada e o juízo ocupado com dúvidas e dificuldades”. Publicações manuscritas, porque não havia tipografias no País, onde o primeiro livro publicado só se deu em 1808, enquanto que no México isso se deu em 1530, no Peru em 1584 e nos Estados Unidos, em 1639.
Outra importante figura de médico do Brasil colonial, formado em Montpelier, professor da Universidade de Coimbra foi o pernambucano José Corrêa Picanço, médico particular de D. João VI que o trouxe em sua companhia para o Brasil. À sua influência sobre o Monarca se deve a fundação de nossa primeira Escola de Medicina em Salvador, em 1808.
E as ligações entre medicina e literatura se fazem sentir com Jerônimo Cardano (1501 – 1576), matemático, filósofo e médico, formado em Pádua com exercício da medicina em Milão e em Roma. Suas teorias médicas eram quase sempre inspiradas no modelo de pensamento da Renascença a simpatia sobre a qual Foucault e o nosso famoso José Guilherme Melchior discorrem longamente. Ítalo Calvino acentua a ligação medicina-literatura dizendo que Hamlet lia um livro de Caldan, na cena em que responde a Polônio: “palavras, palavras, palavras…” (Tudo está na Bíblia, tudo está em Shakespeare)! …
O nosso maior escritor médico foi, sem dúvida Guimarães Rosa… “Para pensar sou cão mestre – o senhor solte em minha frente um idéia ligeira, e eu rastreio essa por fundo de todos os matos, amém” (Riobaldo). Sérgio Rouanet assim se pronuncia: “homem mais singularmente brasileiro e, ao mesmo tempo, homem mais amplamente universal’”. Toda sua obra mantém-se na verdade nesta tensão entre contrários. “Homem do sertão, levo o sertão dentro de mim e o mundo no qual vivo é também sertão”.
Sobre o sertão, também escreve Sérgio Buarque de Holanda: As Doenças do Sertão. “A medicina e a magia primitivas não conhecem nenhuma distinção nítida entre malefício e moléstia. Assim, por exemplo, a mesma reza que serve para aliviar uma parturiente poderá resguardar um indivíduo de qualquer acidente funesto, preserva-lo do mau olhado ou imunizá-lo contra a infecção do ar ruim”.
Em seguida ao nosso maior médico-escritor, o nosso maior médico-escritor: Júlio Afrânio Peixoto. Grande destaque na área médica professor catedrático de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade do Rio de Janeiro, autor de diversas obras médica de grande valor e ao mesmo tempo, grande romancista poeta e literato do mais requintado estilo. “A inteligência de Afrânio Peixoto é assombrosa”, disse o Prof. Rocha Vaz. A Esfinge (1919), As Razões do Coração (1925) e Bugrinha (1947), são romances de sua autoria que, aliás, eu possuo. Historiador, escreveu, em 1940, Pequena História da América e História do Brasil. Grande admirador de Castro Alves, escreveu Castro Alves, o poeta e o poema, e admirador também de Camões tendo escrito A Medicina dos Lusíadas que lhe valeu o titulo de “Doutor Honoris Causa” pelas Universidades de Coimbra e de Lisboa. A propósito, Vivaldi Moreira, em Amenidades camonianas, refere-se ao seu “mestre Afrânio Peixoto que tantas vezes me falou apaixonadamente sobre Camões…” “Vimo-lo divino sobre uma obra enciclopédica que é a Natureza e Arte, Espaço e Tempo, História e Filosofia Fé e Patriotismo, Aspiração e Esperança”.
O final de vida desse grande mestre foi triste e sombrio, segundo Josué Montelo que em artigo recente, escreve sobre a exploração malévola que foi feita sobre a frase de Afrânio “a literatura é o sorriso da sociedade”. É que ele se recusara a votar em Getúlio Vargas para a Vaga deixada por Alcântara Machado, na Academia Brasileira de Letras. O DIP – Departamento de Imprensa e Propaganda – órgão da ditadura Vargas, se encarregou de combatê-lo como “persona non grata”, ao governo. Eleito Getúlio, Afrânio nunca mais voltou à Academia.
Outro importante membro do tema Medicina e Literatura foi Jorge Mateus de Lima médico, natural de Alagoas, formado no Rio e com consultório movimentado, durante muitos anos, na Cinelândia. Para muitos, entre esses, críticos portugueses, foi ele o maior poeta brasileiro de todos os tempos. Sua poesia tinha fases de parnasianismo, de misticismo, de folclorismo e ainda fases bíblicas, lembra Antônio Carlos Villaça. Sua obra mais conhecida e mais famosa é Invenção de Orfeu, assim encerrada: “No momento de crer, criando contra as forças da morte, a fé. No momento de prece, orando pela fé que perderam os outros. No momento de fé, crivado com umas setas de amor, as mãos e os pés e o lado esquerdo. Amém”.
Mas é o momento de voltarmos a Minas, e o fazermos com Pedro Nava Paulo Pinheiro Chagas, Agripa Vasconcelos, Salomão Vasconcelos, Silvio Miraglia e Leopoldo Corrêa.
Pedro Nava médico, formado por nossa Faculdade de Medicina grande memorialista lírico, humorista e proustiano. Uno Lara Resende o considera mais importante para a literatura brasileira do que Marcel Proust o foi para a francesa.
Começou a escrever já na chamada 3º idade, depois de exercer a medicina por longos anos, e de se consagrar como notável reumatologista. Baú de Ossos, foi seu primeiro livro (1972) ao qual se seguiram Balão Cativo, Galo das Trevas, Círio Perfeito e Beira-Mar 1985). Neste livro focaliza a época de seu curso médico e de suas peripécias em Belo Horizonte, ainda cidade provinciana marcada pela existência tranqüila de seus habitantes, todos praticamente conhecidos uns dos outros. Os nomes de pessoas, políticos, locais de encontros, praças e ruas, vão surgindo deliciosamente, prendendo a atenção do leitor: “Três moços subindo a rua da Bahia. Todos os caminhos iam à rua da Bahia… Da rua da Bahia partiam vias para todos os fundos do fim do mundo, para os tramontes dos acaba-minas.”
Paulo Pinheiro Chagas, médico formado no Rio e também advogado e ainda Deputado Federal. Como literato consagrou-se com dois grandes livros: Teófilo Ottoni – herói do povo (1943), obra premiada pela Academia Brasileira de Letras, e Esse Velho Vento da Aventura (1977) (memórias), livro notável de um memorialista historiador e ensaísta de vasta cultura e pleno de conhecimentos.
Agripa Vasconcelos, médico, também formado no Rio, autor de um precioso livro, Vida em Flor de Dona Beja (1957), romance histórico e sociológico passado no século XVIII, tendo como fulcro a vida amorosa e aventurosa de Ana Jacinta de São José, apelidada Beja”: “Você não pode ver uma flor que não corra a pegar e cheirar. Você parece um beija-flor. Comecei a chamar a neta de beija-flor que depois virou Beja.” (À D. Beja, Minas deve 94.000 quilômetros quadrados de área que antes pertenciam ao Estado de Goiás).
Salomão de Vasconcelos, médico, formado no Rio, e também advogado. Historiador laureado, com várias publicações preferentemente relacionadas com a história de Minas, como: O Fico __ Minas e os mineiros na Independência (193 7), História de Mariana (1945), Solares e Vultos do Passado (1950), O Palácio de Assumar, etc. Livros, todos eles, de grande conteúdo e ricos ensinamentos históricos, sempre bem expostos por um historiador do mais alto nível, dição que o levou ao cargo de presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais.
Silvio Miraglia médico, nascido na Itália, mas desde muito jovem radicado em nosso Estado. Fez o curso médico na Faculdade de Medicina de nossa Capital, mas formou-se no Rio. Exerceu com muita proficiência durante muitos anos, a medicina em Belo Horizonte, antes de se dedicar á literatura. Escreveu muito, publicando artigos de conteúdo os mais variados, até que em 1990, lançou sua obra magistral: Serra do Curral – Recordações: “Ó Verdejante e alcantilada Serra/ que, limitando ao Sul esta cidade/ proteges e engalanas nossa terra/ quem te galgou/ te ama com saudade/ Agora te contemplo só à distância/ Subir-te ainda ao cimo, bem quisera/ e “ver” Belo Horizonte ao fim da infância/ ao tornar-se Cidade-Primavera, Mas o corpo já sente relutância, e nossa alma suspira: oh, quem nos dera…”.
Leopoldo Corrêa médico mineiro residente em Formiga onde sempre exerceu a profissão. É formado no Rio e foi membro do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais e da Academia Municipalista de Letras de Minas Gerais. Escreveu o importante livro Achegas à História do Oeste de Minas (1955) e o magnífico “Sousinha”, obra biográfica sobre um médico maranhense, Joaquim Gomes de Sousa – Sousinha – que além de médico formado no Rio, foi engenheiro, matemático, físico e poliglota, “cuja inteligência assombrosa (desta vez me permito um adjetivo um tanto escandaloso, mas que bem traduz a minha admiração) parecia não ter limites”:Miguel Osório de Almeida. … “Talento curioso de jurista, matemático, médico e poeta, Joaquim Gomes de Sousa: Joaquim Nabuco. “Gigante intelectual, a nossa mais completa cerebração no século, Joaquim Gomes de Sousa, o “Sousinha”, jurista, médico e poeta, legando-nos sobre o cálculo infinitesimal páginas que ainda hoje sobranceiam toda a Matemática”: Euclides da Cunha.
Na idade do Ouro da Matemática, diz Leopoldo Corrêa, era a memória o cartão de visita com que os matemáticos se apresentavam em público. Em 1858, Sousinha apresentou às Academias Européias, com retumbante sucesso, Recueil de mémoires d’analyses et mathématiques, onde condensou inúmeros trabalhos por ele escritos. Depois, em 1859, em Leipzig, publicou Anthologie Universelle, choix des meilleures poésies lyriques de diverses nations dans les langues originales’. Sousinha foi considerado o “Newton brasileiro”, o que nos leva a outro médico também gênio, o inglês Thomas Young, cognominado de “Young, o fenômeno”, um dos redatores da Enciclopédia Britânica e o introdutor da palavra “energia” com o sentido que tem hoje. Young era poliglota, falava todas as línguas européias, inclusive o grego e o latim e ainda o hebraico, o persa, o turco, o etíope e lia hieróglifos egípcios.
Mas não se pode falar sobre Medicina e Literatura sem citar os clássicos desse assunto (“o livro clássico assemelha-se aos antigos talismãs – Ítalo Calvino): os ingleses Connan Doyle, Somerset Maugham e Cronin, o alemão Schiller, os russos Dr. Jivago, celebrizando Boris Pasternach e Tchekahov, que teria sido o modelo do “Dr. Jivago”, e os Júlios, portugueses: Diniz, com As Pupilas e Dantas, com A Ceia, todos médicos universalmente conhecidos por suas obras literárias.
Vou terminar, porém, com três autores franceses, não médicos, mas que, pela criação de personagens médicas, tão importantes em suas obras, incorporaram-se em definitivo à literatura médica.
Honnoré de Balzac que ficou tão dominado por seus personagens, que os tratava como pessoas de verdade. Assim, no leito de morte, só aceitaria “como médico o Dr. Biachon”, seu personagem, bom médico, em Pai Goriot, recusando terminantemente, até morrer, médicos verdadeiros postos à sua disposição. Sobre o “Dr. Biachon” ainda há interessante passagem sobre o milionário mandarim, que, como se sabe, Eça de Queirós usou posteriormente em seu romance com este nome. O bom “Dr. Biachon” recusou-se a ter o pensamento com o qual mataria o mandarim e herdaria sua fortuna.
Marguerite Yourcenar, com seu grande livro A Obra em Negro, nos apresenta o seu principal personagem, Zenon, médico, alquimista e filósofo, que, como Erasmo, “cresceu para a Igreja, o meio mais seguro para um bastardo viver comodamente e alcançar honrarias”. Zenon escolheu como seus guias e seus mestres, a Paracelso, famoso médico e alquimista suíço, e Miguel de Servet, como ele dedicado aos estudos sobre a circulação do sangue, e ainda o grande Leonardo e o filósofo contestador, Campanella.
Anatole France, em cuja obra há vários personagens médicos: “Dr. Nozière, cético e bom: a natureza cura, o remédio diverte o doente. Dr. Fornerol, gordo e bigodudo, passava por ser o melhor médico da cidade. Dr. Trublet, filósofo, havia clinicado no Cairo e era apelidado de Dr. Sócrates, devido a suas idéias. Dr. Machellier, pequeno e gordo, conversador e vaidoso e, finalmente, o Dr. Saumon, belo e gracioso, amado pelas mulheres e médicos da alta sociedade.
Em terminando com Anatole France, homenageio a memória de meu pai, que se quer conheci pelo seu precoce falecimento. Entre os livros que deixou, encontrei, na minha meninice, Anatole France, aprendendo a querê-lo e a conservá-lo: hoje sou possuidor de suas obras completas constantes de 25 alentados volumes, nos quais os médicos acima dão o toque final a nossa Medicina e Literatura.