Discurso Memorial Hilton Rocha
Nicomedes Ferreira da Silva – 2002
Senhores Patrocinadores do Memorial Hilton Rocha
Senhoras e Senhores
Caros Colegas
Meus Amigos
Designado que fui para representar duas prestigiosas instituições nesta sessão solene de lançamento da Pedra Fundamental do Memorial Hilton Rocha, quais sejam a Academia Mineira de Medicina ( AMM ) e o Departamento de Oftalmologia da Associação Médica de Minas Gerais ( AMMG ), sinto-me profundamente recompensado, envaidecido e honrado, embora sabendo não ser a pessoa mais indicada e mais merecedora para exercer tão nobre tarefa.. O Dr. Ernesto Lentz de Carvalho Monteiro, Presidente da AMM. aqui esteve prestigiando este evento ao participar da Missa Solene e das atividades do turno da manhã juntamente com o Dr. Castinaldo Bastos Santos, presidente da AMMG. Lamentaram não poder participar das demais atividades devido a compromissos anteriormente assumidos.
O Dr. Arnaldo de Castro é o atual presidente do Departamento de Oftalmologia da AMMG e eu sou seu vice – presidente. Infelizmente 2 eventos se superpõem neste momento. Já estava programada há tempos e está sendo realizada no dia de hoje, de 8 às 18 horas, o curso “Imersão em Uveítes”, patrocinado pelo Departamento de Oftalmologia da AMMG. Como o Departamento não poderia deixar de participar dos 2 eventos somos obrigados a nos dividir. Pela manhã estive, rapidamente, na AMMG de onde me retirei para ter o prazer de participar desta solenidade. O Dr Arnaldo aqui esteve prestigiando as atividades da manhã mas foi obrigado a retornar à AMMG para conduzir os trabalhos de Uveítes.
Incumbiu-me o Dr. Ernesto de informar aos presentes que a Academia Mineira de Medicina irá programar para o segundo semestre de 2003 um ciclo de palestras intitulado “Hilton Rocha, o Acadêmico”. Em nome da AMM convido a todos para dele participar.
Professor Hilton Rocha
No intervalo que precedia esta sessão confidenciava-me o Dr. Ernesto e o Dr. Castinaldo que não houve nenhuma atividade médica no Brasil da qual não participasse o Dr. Hilton. Todos concordamos. Enumerar todos estes eventos seria por demais cansativo.
Hilton Rocha foi o fundador do Conselho Regional de Medicina, aqui representado pelo seu presidente Dr. Geraldo Guedes. Merecidamente, o número de Hilton Rocha no CRMMG é 0001; é o primeiro e o único. Sabem as Senhoras e os Senhores que os números do Conselho são perenes para cada titular. São desativados após a morte do titular porem permanecem “in aeternum” ligados ao nome do titular. Por isto o número 0001 do CRMMG será eternamente do Prof. Hilton Rocha.
Foi Presidente da AMMG por dois mandatos. Foi Presidente da Associação Médica Brasileira. Fundador do Conselho Brasileiro de Oftalmologia (CBO) e membro atuante da Sociedade Brasileira de Oftalmologia.
É o único médico oftalmologista brasileiro que compareceu a todos os Congressos Brasileiros de Oftalmologia e a todos os Congressos de Prevenção da Cegueira.
Enumerar suas qualidades e seus feitos seria repetitivo numa sessão como esta onde muito já se destacou mas muito ainda falta. Sua vida foi e é tão rica em todas as atividades humanas que cremos nunca conseguirmos fazer a sua reconstituição completa. Sempre vai faltar alguma coisa.
Lamento não saber fazer discursos eloqüentes, não ser poeta, não ser erudito.Quisera ter a verve de Hilton Rocha para lhe prestar esta homenagem. Como não a tenho, fico feliz em escutar os meus pares e vou tentar contar-lhes algumas passagens e casos que comigo aconteceram na convivência com o grande mestre, amigo e Professor Hilton Rocha.
Sinto-me feliz por ter estudado Medicina na segunda metade do século XX , pois assim o fazendo, tive o privilégio de conhecer, de conviver e de desfrutar da sabedoria de Hilton Rocha. Tudo o que sei e aprendi de Oftalmologia tem a marca do Mestre.
Há pouco dizia o Dr. Cleber Godinho que o Prof. Hilton cometeu o grande erro de não ter um discípulo que o superasse. Isto é verdade. Diria eu que a obra de Hilton Rocha pode ser comparada a frondosa árvore com múltiplos galhos, folhas, folhagens, flores e frutos que irradiam uma imensa e repousante sombra. Todos os seus discípulos viviam debaixo da copa e da sombra da arvore e podem ser comparados a sementes. As sementes que ali caiam germinavam, progrediam, cresciam mas não conseguiam, por mais que tentassem alcançar a copa desta árvore. A fecunda luz solar que conseguia ultrapassar e driblar a sua fecunda ramagem apenas permitia o desenvolvimento parcial de novas plantas. Assim sendo, seus enumeráveis discípulos cresciam e progrediam à sua sombra mas nenhum jamais ousou a se aproximar do ápice desta frondosa árvore, embora alguns o tentassem. Em todas as sub – especialidades da Oftalmologia deixou um discípulo de projeção, de destaque, de grande mérito nacional e até mesmo internacional, mas nenhum que fosse maior que o mestre.
Ninguem conseguiu supera-lo pois isto é impossível.
Aprendi com Hilton Rocha que nunca se deve guardar magoa de ninguém e de nenhuma coisa. Se há magoa, quem mais sofre é o magoado, dizia ele. Aquele que magoa pouco sofre. Hilton Rocha não tinha inimigos. Tinha sim pessoas que dele discordavam como é natural em qualquer relação humana.
Por isso, seguindo sua filosofia de vida,também não guarda magoa de ninguém. Com orgulho posso dizer, como ele, que são raríssimas as pessoas com quem não falo. Tenho colegas que de mim discordam mas não tenho inimigos. Hilton Rocha também não tinha inimigos e nunca guardou uma mágoa sequer.
Certa ocasião recebeu carta de um discípulo que o ofendia de modo muito agressivo. Sabendo do fato procurei o Professor para lhe oferecer a minha solidariedade e condenar a atitude do colega. A este colega o Professor dera todo o apoio e o projetara, nacional e internacionalmente, como grande especialista na área.Esta fantástica projeção este colega deve ao Prof. Hilton. Perguntei então ao Prof. Hilton o que havia acontecido. Ele me confirmou ter recebido a tal carta com ofensas tão descabidas. Perguntei se poderia ler o seu conteúdo para me posicionar melhor. Ele calmamente me respondeu não ser mais possível ler a tal carta pois a lera uma só vez e a queimara. Não queria ter o dissabor de lê-la novamente.
Mesmo ferido pela ingratidão do discípulo, continuou Hilton Rocha, não guardo mágoa; o fulano (permitam-me não citar o nome) deve estar com algum problema e este desabafo pode ajudá-lo a vencer suas frustrações. Tal fato mostra a grandiosidade da alma de Hilton Rocha. Como tais atitudes me marcaram e foram e são úteis para a minha vida profissional, familiar e particular.
A minha entrada no Curso de Especialização no Hospital São Geraldo constitui uma outra lição de vida. Lutando com muitas dificuldades tive a honra de me graduar em Medicina em 1962. Como sempre gostei de dividir com outras pessoas o pouco que sei e aprendi sempre me dediquei ao ensino. Fui monitor de diversas clínicas durante cada ano de minha graduação. Precocemente fui professor do Curso Pré-Médico Alfredo Balena, do Curso Mario de Oliveira e monitor de Histologia desde o 2o ano de graduação. O meu ideal então traçado, era ser o catedrático de Histologia e Embriologia da Fac. Medicina da UFMG, substituindo o grande mestre, Prof. Nello de Moura Rangel. Tudo caminhava bem dentro das minhas previsões. Em 1968 o Ensino foi bombardeado, a meu ver, pela criação do Sistema Departamental e o cancelamento da Cátedra. Foram criados o Instituto Central de Biologia (ICB), Instituto de Ciências Exatas (ICEX), etc. A Histologia e a Embriologia foram unificadas em um único curso para todas as áreas da saúde com enfermagem, farmácia, odontologia, ciências naturais, veterinária e também a medicina. Eu me revoltei com esta situação pois percebi, precocemente , que ali começava o naufragar o ensino médico. Como era possível dar aula de Histologia para uma sala tão heterogênea de 120 alunos de todas as áreas citada acima? O curso para os alunos de medicina que necessitam conhecer bem histologia deve ser o mesmo para os alunos de enfermagem? São perguntas tão óbvias que não merecem respostas. Mas os mentores desta pseudo-reforma universitária assim não entendiam. Foi criado o sistema Departamental. Iniciou-se a piora acentuada do ensino médico. Eu que me preparara para me dedicar ao ensino em tempo integral fiquei nocauteado e desnorteado. Tinha 6 anos de formado. Não sabia exercer a clínica. O que fazer? Um belo e benfazejo dia, chegava à Faculdade quando meus olhos se voltaram para o prédio do Hospital São Geraldo. Uma luz brilhou em minha mente. Porque não voltar a ser aluno, começar tudo de novo e fazer clínica em Oftalmologia? Confesso que passei alguns dias sem dormir. Procurei o meu mestre Rangel a quem disse que não poderia mais ficar no ensino puro com o término da cátedra. Pedi auxílio para me indicar ao Prof. Hilton. Tinha receio de conversar com uma personalidade tão importante como era o mestre Hilton. Certo dia, criando coragem que sempre me falta, decidi com ele conversar para pedir a minha entrada no curso de pós-graduação criado em 1959. Estávamos no ano de 1968 e o curso iniciaria em março de 1969. Como era professor assistente de Histologia logo imaginei que a minha entrada seria facilitada. Ledo engano. O Prof. Hilton me recebeu com a fidalguia de sempre mas me disse para estudar para a seleção que iria ser realizada em dezembro de 1969. Comecei a estudar as cadeiras básicas como Bioquímica, Biofísica, Óptica física, Óptica geométrica, clínica médica, etc. Tive o amparo e a ajuda de meu futuro colega de pós-graduação, João André da Costa Maia, pois começamos a estudar juntos para o concurso. Muito devo a ele. Os meus concorrentes tinham sido meus alunos na Histologia. Como ficaria o meu ego se eu não fosse aprovado? Estava muito afastado das matérias e a minha desvantagem era imensa. Contudo decidi enfrentar. Havia 6 vagas.Realizado o concurso fui classificado em 6o lugar. Alegria maior só tive ao passar no vestibular. Fiz a minha Especialização em 1969 e 1970. Fui agraciado com o título de Oftalmologista, do qual muito me orgulho, em março de 1971. Nunca houve classificação dos alunos de pós-graduação. Por caminhos que ninguém consegue desvendar, compreender e entender, em 1971 o Professor Eduardo Jorge Carneiro Soares, que era o Presidente da Associação dos Ex-residentes e Estagiários do Hospital S. Geraldo, resolve premiar o aluno melhor classificado. O critério usado foi a avaliação feita pelos professores do curso e analise das notas obtidas em provas. Ao que sei foi a única vez que houve tal premiação. Após avaliação dos professores, alguns dos quais foram pressionados por alguns dos meus colegas, tive a honra de ser classificado em 1o lugar. Fui o último a entrar e o primeiro a sair. Detalho todos estes fatos para mostrar como o Prof. Hilton Rocha valorizava o trabalho de cada aluno não os favorecendo gratuitamente.
Fui transferido da Histologia do ICB para o Hospital S. Geraldo por influência do Prof. Hilton. Passei a ter o privilégio de conviver todos os dias com os ensinamentos do Mestre e modestamente ajudá-lo no ensino aos residentes. Tenho o orgulho de conhecer e manter contato com todos os residentes de Oftalmologia desde 1959. O Professor pediu-me para dividirmos as aulas de Embriologia. Eu daria a Embriologia Geral e ele a Embriologia Ocular. Assim foi feito durante anos, com muito prazer, tanto no Hospital S. Geraldo como também no Instituto Hilton Rocha.Inaugurado o I.H.R. novamente sou convocado para dar o curso de Embriologia Geral. As aulas eram ministradas de 20,00 às 21,30 horas. Todos estávamos cansados dos afazeres diários, especialmente o Prof. Hilton pelo trabalho estafante desde as 6,30 horas quando ele religiosamente chegava ao trabalho. Ele sempre comparecia para me apresentar aos novos alunos. Com a fidalguia que era a sua característica, sentava-se na primeira fileira ao lado dos alunos novatos (R-1) e assistia toda a minha aula. Nela eu expunha coisas elementares como aparelho genital masculino, aparelho genital feminino, formação de gametas, formação de óvulos, etc. São assuntos tão básicos que hoje são estudados nos cursos de terceiro grau; a própria televisão tem tratado de tais assuntos. Numa destas aulas noturnas o Prof. Hilton, já alquebrado pelo desgaste natural que a idade traz e pelos sintomas de suas patologias, senta-se novamente na primeira carteira e assiste l,5 hora de aula. Às vezes era vencido pela exaustão e dava uma cochilada mas logo se recuperava. Eu me sentia desconfortável pois sabia que ele assim agia para me prestigiar e agradecer pelas aulas o que não era absolutamente necessário. Por outro lado, falar na presença do mestre sempre foi para mim muito difícil pelo receio de cometer gafes. Terminada a aula não resisti e a ele perguntei como tinha paciência para suportar durante tanto tempo um assunto tão elementar e tão chato para quem tanto sabia. Ele batendo a sua mão direita no meu ombro e me afagando suavemente (este era um gesto seu muito característico e amigo) me respondeu: aprendi muito com você aqui nesta noite.Como é gratificante ter lições como esta. A sua humildade não lhe permitia agir de outra maneira. Quando assisto qualquer palestra, aula ou discussão nos congressos médicos jamais me esqueço desta passagem Sempre aprendemos quando temos humildade para reconhecer que pouco sabemos.
O próximo episódio muito me emocionou deixando marcas que jamais vou esquecer. Estamos em março de 11993, ano de sua morte. Estava atendendo clientes em meu consultório particular quando a secretaria me avisa que de Hilton Rocha desejava falar comigo. Deixei tudo para atende-lo prontamente. Era realmente o Prof. Hilton. Quando ele queria falar com alguém não mandava a secretaria ligar mas o fazia pessoalmente. Não dizia que era o Doutor ou Professor Hilton mas dizia é o Hilton. Lição de fidalguia e humildade para todos nós. Até hoje sigo esta sua lição. Necessitando falar com algum colega para resolver algo de meu interesse, eu mesmo faço a ligação e não deixo o colega esperando através da secretária ou ouvindo as detestáveis músicas.
Fiquei profundamente preocupado pois o Prof. disse que precisava falar urgentemente comigo. Disse a ele que dentro de 1 hora estaria no IHR.
Lá chegando o Prof. me disse que não tinha condições físicas de ficar de pé para dar as aulas de Embriologia e de Histologia. A insidiosa e terrível moléstia prostática o atingia de modo irreversível. Pediu-me para o fazer por ele e me fez prometer que jamais deixaria de dar as aulas de Histologia Ocular. Tal fato tem 10 anos e a promessa tem sido cumprida religiosamente. Após as aulas sempre fazia uma breve visita ao seu apartamento na esperança vã de melhora. Sofrendo dores terríveis na coluna vertebral necessitou usar analgésicos potentes como a Dolantina na tentativa de aliviar tamanho sofrimento. Terminado o curso fui notifica-lo que tudo correra bem. Aguardei que ele acordasse pois estava sob o efeito de medicação potente.Ele acordou, olhou para mim com muito carinho, fechou o pulso e levantou a mão direita num sinal de vitória e me disse: Nicomedes nós conseguimos.Perguntei: conseguiu o que, Professor? O Professor responde: conseguimos a aprovação do curso do IHR como curso de Doutorado em Oftalmologia. Lembre-se que você me prometeu dar as aulas de histologia. Não deixe o meu curso morrer. Fiquei com a voz embargada, segurando as lágrimas que teimavam inundar meus olhos, mal pude responder que cumpriria a minha promessa. Este homem estava morrendo e ainda preocupado em concretizar o ideal do Doutorado. Realmente sua alma era muito grandiosa. Logo a seguir dormiu novamente sob o efeito dos analgésicos. Foi a última vez que tive o privilégio de falar com ele. Como é doloroso ver uma pessoa tão querida e a quem tanto devemos sofrer tanto sem reclamar. São episódios que vivemos e que deixaram marcas indeléveis na nossa personalidade.
Todos os senhores aqui presentes sabem de vários casos e episódios acontecidos com o Prof. Hilton. Eu mesmo tenho mais de uma dezena deles. Mas o tempo urge e necessito dar oportunidade para outras manifestações dos colegas.
Contudo, não poderia deixar passar a oportunidade de ouvir o Prof. nos falando através de um vídeo de 4 minutos. Em 1987 durante o XV Curso Nacional de Atualização em Oftalmologia patrocinado pelo Hospital São Geraldo, tive a honra de lhe prestar a homenagem que foi gravada e cujo início os senhores ouviram a seguir.
Segue a gravação.
O Dr. Ernesto me delegou poderes para em nome de todos as confreiras e confrades da Academia Mineira de Medicina que o Dr. Hilton fundou e tanto amou, ler uma mensagem da missa que acabamos de assistir, como um agradecimento por tudo que o Prof. Hilton Rocha fez por todos nós.
A todos que chamaste para outra vida na vossa amizade e aos marcados com o sinal da fé, abrindo vossos braços, acolhei-os. Que vivam para sempre bem felizes no reino que para todos preparastes.
A todos daí a luz que não se apaga.
O Senhor, Prof. Hilton, é esta luz que nunca vai se apagar.
Muito obrigado a todos.