As doenças do Aleijadinho: uma nova interpretação – Acad. Geraldo Guimarães da Gama
Conferência realizada em 09 de novembro de 1998, na sala Borges da Costa da AMMG, a convite da Academia Mineira de Medicina, do Instituto Mineiro de História da medicina e da Associação do professor Sênior da Faculdade de Medicina da UFMG.
Minha indicação ao estudo das doenças do Aleijadinho se deve a dois fatores. Em primeiro lugar me atrai o desafio de diagnosticar, passados mais de duzentos anos de sua morte e sem outros meios que o relatório de Rodrigo Bretãs e dados históricos que vêm sendo levantados nos últimos anos. Em segundo lugar, é a crescente admiração por este personagem extraordinário que foi a pessoa de Antônio Francisco Lisboa e o escultor não menos admirável. Ele tem sido pouco lembrado como a pessoa humana que foi capaz de lutar contra as mais diversas dificuldades e superá-las com galhardia. Já me impressionei com este fato e terminei minha intervenção na Mesa Redonda da AMMG, de 1968 sobre as doenças de A.F.L salientando esta face do artista propondo-o como patrono de todos os lesionados, paraplégicos, hemiplégicos, reumáticos que podem ter nele um exemplo a seguir. Agora, depois de estudar mais a sua capacidade artística e a força vital que o impulsionou por tantos anos, passo a admirar nele a fé edificante.
Sobre as doenças de Antônio Francisco devemos distinguir, a partir do relatório Bretãs e dos dados históricos do artista, que ele sofreu na década dos quarenta anos, a doença que o tornou aleijado; e há uma outra doença que o acometeu na oitava década de vida, terminando em sua morte aos 84 anos. Tancredo Alves Furtado, no seu precioso estudo sobre “O Aleijadinho e a medicina”, anota as doenças até então invocadas por vário médicos e em 3 congressos ou mesas-redondas: (projeção 1)
1. Zamparina
Humor gálico
Humor escorbútico
Cardalina ou Cardina
2. Gastão Penalva (1930)
Doença de Raynaud
Endoarterite obliterante
Lepra
Siringomielia
Bócio
Bouba
3. José Mariano Filho
Lepra
Reumatismo Deformante
Acidente Vascular Cerebral
Deformidades congênitas
4. Sesquicentenário da morte (1964)
Tromboangeite obliterante
Para-amiloidose polineurítica
Porfiria
5. Mesa Redonda da AMMG (1968)
Lepra
Trombo-angeite obliterante
Artrite Reumatóide
Acidente Vascular Cerebral
Hiperteilorismo e estrabismo divergente
Esta longa lista de possibilidades diagnósticas, só por si, mostra a dificuldade de consenso tomando por base informações coletadas por leigo, embora ilustre, que não conheceu pessoalmente o escultor. Ao assumir sua função de Diretor do Ensino da Província, o deputado Rodrigo Bretãs se informou com as pessoas gradas de Vila Rica, possivelmente com médicos e padres, e tomou conhecimento com as versões populares que já circulavam pela cidade. Esteve também, com a nora de Antônio Francisco, que lhe descreveu o quadro final do doente, de quem cuidou por dois anos, entrevado em um pobre catre, com um lado do corpo todo chagado, o rosto deformado pelas pálpebras inflamadas e a boca torta.
Este relato clínico não apresenta os dados em ordem cronológica, de modo que a sua interpretação exige uma análise minuciosa em que se procure ordenar os fatos plausíveis e eliminar as incoerências como esta: num determinado ponto se relata que perdeu todos os dedos dos pés e das mãos, só restaram os indicadores e polegares e logo a seguir se afirma que subia em escadas altas, de carpinteiro, exibindo uma agilidade que chamava a atenção…
Diante de várias incoerências da biografia feita por Rodrigo Bretãs, creio que não se deve interpretar literalmente a história relatada. Acredito que a falta deste critério de análise, levou vários interpretes a se comover diante da descrição patética dos últimos dois anos do artista e interpretar todas as mutilações, deformidades faciais e dores como devidas à lepra.
Outro dado que deve ser levado em conta para uma interpretação mais exata foi salientando por Silvio Vasconcelos. Na lenda em torno do grande escultor se procurou ampliar o valor das suas obras pelo fato de ser um escultor sem dedos e, mais tarde, sem mãos como consta do retrato oficial, decretado por lei, adotado pelo Museu Mineiro (projeção 2), mas que a meu ver não passa da imagem do Aleijadinho da lenda, dos mitos que procuraram engrandece-lo pelas mutilações, quando seu valor está muito acima destas deficiências físicas.
Um retrato, muito mais compatível com a descrição de Bretãs foi feito por Belmonte e é este aqui projetado (projeção 3).
Podemos eliminar todas as hipóteses diagnósticas da listagem de Tancredo Furtado pelos seguintes motivos:
1. Zamparina: nome dado a uma epidemia que assolou o sudeste do país pouco antes da data em que adoeceu Antônio Francisco, 1777, aos 47 anos (conforme o seu batistério que data seu nascimento em 1730). Nesta idade e gozando de perfeita saúde, já conhecido por suas esculturas e trabalhando em uma de suas principais criações: a Igreja de São Francisco de Ouro Preto é pouco admissível que tenha sofrido esta virose, provavelmente Poliomielite. Concorda com esta exclusão o Prof. Noronha Peres, professor de Microbiologia da UFMG e conhecido virologista.
2. Humor escorbútico: sendo amante da boa mesa e desfrutando de boa situação econômica nesta altura de sua vida, AFL não podia ser carente de Vitamina C. Pode ter sofrido desta e doutras carências alimentares durante a infância, especialmente depois que seu pai abandonou sua mãe para se casar com herdeira rica e branca: o futuro artista contava com 8 anos. Depois de adulto e gozando de próspera atividade, passou a “cuidar sempre de ter boa mesa”.
3. Humor gálico- Sífilis- atribuída ao artista porque era visto com freqüência nas festas e danças populares: sua doença poderia decorrer “dos excessos venéreos”. As condições sanitárias de Vila Rica, com sua população em crescimento vertiginoso graças às lavras de ouro, certamente ofereciam condições favoráveis à propagação das doenças sexualmente transmissíveis. A Sífilis pode realmente causar lesões múltiplas na sua propagação lenta por diversos tecidos, especialmente os vasos (endarterite, – Trombose e aneurismas) e o sistema esquelético (goma articular determinante da Artrite altamente destrutiva, especialmente do joelho). Sistema nervoso (obstruções arteriais com enfarte cerebral ou aneurismas que se rompem e decretam morte do tecido nobre invadido). Como é de evolução lenta o acontecimento de um tecido pode ser precedido de anos da lesão de outro tecido.
A história da AFL relata que não podia andar usando os joelhos e usava talas de couro ou madeira para se sustentar de pé: teria sofrido da Artrite descrita por Cleiton?
O quadro final, nos 2 anos em que esteve entrevado com “um lado do corpo dragado”, alterações faciais e do humor assim descritas por Bretãs: “as pálpebras inflamaram-se… e ofereciam à vista sua parte interior; perdeu quase todos os dentes e a boca entortou-se, como sucede freqüentemente ao estuporado; o queixo e o lábio inferior abateram-se um pouco; assim o olhar do infeliz adquiriu certa expressão sinistra e de ferocidade que chegava mesmo a assustar a quem quer que o encarasse inopinadamente. Esta circunstância e a tortura da boca o tornavam de aspecto asqueroso e medonho”.
Esta descrição é compatível com a paralisia facial: abaixamento da pálpebra-ectropion, inflamação ocular pela incapacidade de oclusão palpebral, tortura da boca… E o sinal básico dos médicos que têm diagnosticado a Lepra nervosa, pois é freqüente na hanseníase deste tipo: Tancredo A. Furtado e Geraldo Barroso são os autores mineiros exponenciais desta hipótese.
Entretanto outras patologias também produzem a paralisia do Vll par craniano – uma delas a Sífilis: seja por neurite deste nervo, seja por goma compressiva desta raiz na sua emergência da caixa craniana. E a endarterite de artérias cerebrais, levando à trombose, causaria a Hemiplegia que imobilizou o artista por 2 anos, exigindo os cuidados constantes de sua nora.
Poderíamos até interrogar se a expressão sinistra e o aspecto medonho que assustavam as pessoas pudessem decorrer das alterações da fala que os hemiplégicos apresentam que os tornam mais agressivos e infelizes pela dificuldade de se expressar… mas não queremos fugir ao objetivo de ser o mais rigoroso no diagnóstico diferencial tão difícil.
Cardalina
Do relatório de Rodrigo Bretãs lemos: “até a idade de 47 anos, em que teve um filho natural, ao qual deu o mesmo nome do seu pai, passou a vida no exercício de sua arte, cuidando sempre em ter boa mesa e no gozo de perfeita saúde; e tanto que era visto muitas vezes, tomando parte em danças vulgares. De 1777 em diante, as moléstias, provindas, talvez, em grande parte dos excessos venéreos, começaram a atacá-lo fortemente”.
Logo após levantar a hipótese “do mal epidêmico que, sob o nome de Zamparina, pouco antes havia grassado nesta província”… após descrever o que nos parece ter sido o quadro final das desventuras do artista (discutidos acima) relata ainda o biografo: “Quando em Antônio Francisco se manifestaram os efeitos de tão terrível enfermidade, consta que certa mulher de nome Helena, moradora da rua do Areão ou Carrapicho, desta cidade, dissera que ele havia tomado uma grande dose de Cardina (assim denominou a substância a que se referia) com o fio de aperfeiçoar seus conhecimentos artísticos , e que daí lhe provinha tão grande mal!
Esta substância mereceu estudos acurados de Gastão Penalva que concluiu ser a mesma um alucinógeno extraído de cardos, semelhante ao peyotte usado pelos índios mexicanos. Usada para produzir aumento da sensibilidade e inspiração, só determinou a atribuição da causa dos males de AFL após uso de dose elevada.
Não é plausível atribuir ação danificante sobre as mãos e os membros inferiores do artista, aleijando-o.
Deste modo, podemos admitir um efeito a ponto de danificar a marcha e o uso das mãos lembrando que, no seu trabalho, AFL subia em altas escadas e trabalhava em altos andaimes. Sabendo-se que, por seu temperamento “acrimonioso”, típico do líder que se revelou em sua longa vida de trabalhos constantes, tendo usado dose mais exagerada do entorpecente, AFL pode ter sofrido uma queda das altas escadas ou dos andaimes em que trabalhava.
Este tipo de acidente é comum, ainda hoje, entre os operários da construção civil. Este acidente é a causa mais possível do aleijamento de AFL: ocorreu em plena saúde, aos 47 anos, causou a parada da orientação dos trabalhos que dirigia na igreja de S. Francisco de Vila Rica. Ficou com as mãos aleijadas e com marcha prejudicada. Sofreu fraturas ao apoiar sobre as mãos, lesão da ulna com compressão do nervo com o mesmo nome e paralisia dos dedos mínimo, anular e médio podendo usar os indicadores e polegares – portanto, podendo prender os utensílios do seu trabalho, atando-os aos antebraços. Sofreu forte luxação dos joelhos? Tornou-se um estropiado com fome o descreveu o barão de ESCHWEGE ao vê-lo trabalhar em Congonhas em 1811/1812. Viu-o entalhado com os ferros e macete amarrados aos antebraços: foi por isso que ficou conhecido como “aleijadinho”. A suspeita de luxação dos joelhos talvez se justifique pelo “aparelho aplicado aos joelhos” com o qual podia trabalhar ajoelhado ou de pé e andar sempre amparado.
Mas é difícil acreditar que, depois de aleijado por esta queda, ainda causasse “admiração pela coragem e agilidade com que ousava subir pelas mais altas escadas de carpinteiro”… Esta proeza, certamente, era da época em que gozava saúde antes deste acidente do trabalho.
Rodrigo Bretãs, leigo em medicina, mas rico de outros conhecimentos, cuidadoso ao informar tudo que pôde recolher dos contemporâneos de AFL, nos dá, nestes trechos de seu relatório, a possibilidade mais plausível de compreender como um artesão, ativo, sadio e genial, adoece subitamente – fica aleijado, mas pode ainda exercer sua profissão até aos 82 anos! Trabalhando intensa e produtivamente.
Doenças Sistêmicas: D. de Raynand, endarterite obliterante ou tromboangeite obliterante, reumatismo deformante e artrite reumatóide, para amilosidose polineurítica – todas podem ser afastadas do diagnóstico pelo fato da capacidade laborativa de AFL ter sido tão exuberante: até aos 82 anos ainda foi visto trabalhando. A própria siningomielite também poderia ser excluída por este mesmo argumento.
Hanseníase
Chamamos a atenção para o fato de que a valorização do trecho abaixo transcrito do relatório de Rodrigo Bretãs, isolando-o do contesto total e dos novos dados históricos, o diagnóstico de Lepra nervosa, do tipo turberculóide, é evidente, vejamos:
“O certo é que, ou por ter negligenciado a cura do mal no seu começo, ou pela força invencível do mesmo, Antônio Francisco perdeu todos os dedos dos pés, do que restou não poder andar senão de joelhos; os das mãos atrofiaram-se, curvaram e mesmo chegaram a cair, restando-lhe somente, e ainda assim quase sem movimento, os polegares e os indicadores. As fortíssimas dores que de continuo sofria nos dedos e a acrimônia do seu humor colérico o levou, por vezes, ao excesso de cortá-los ele próprio, servindo-se do formão, com que trabalhava. As pálpebras inflamaram-se, e permanecendo neste estado, ofereciam à vista sua parte interior; perdeu quase todos os dentes e a boca entortou-se, como sucede freqüentemente ao estuporado; o queixo e o lábio inferior abateram-se um pouco; assim o olhar do infeliz adquiriu certa expressão sinistra e de ferocidade, que chegava mesmo a assustar a quem quer que o encarasse inopinadamente. Esta circunstância e a tortura da boca o tornavam de aspecto asqueroso e medonho”
Partiu deste trecho o diagnóstico de Tancredo Alves Furtado, secundando José Mariano Filho e outros ilustres hansenologistas e, atualmente o Dr. Geraldo Barroso, professor da especialidade da Faculdade de Medicina de Barbacena e grande conhecedor da história do artista e dos ambientes em que viveu.
Entretanto, analisando a história toda descrita por Bretãs, não podemos deixar de lado que a doença o acometeu subitamente aos 47 anos – foi a partir daí que passou a ser chamado “Aleijadinho”. A partir daí, com alguns intervalos em que não se encontram recibos dos pagamentos das empreitadas que contratava que foi capaz de voltar ao trabalho usando meios de adaptar o formão e o macete em suas mãos defeituosas, mais ainda capazes de exercer a estatuaria; foi a partir daí que precisou ser transportado, carregado por dois negros conforme o recebido guardado na confraria de S. Francisco de Assis de Vila Rica e trazidos pelo SPHAN. E apesar das mãos aleijadas que o barão de Eschwege declarou ter visto em trabalho em Congonhas do Campo, apesar de estropiado segundo o testemunho deste ilustre mineralogista- apesar disso tudo continuou criando as estatuas dos profetas e de mais de 150 santos de madeira, recebendo encomendas de todos, sem discriminação. Um leproso não seria afastado do convívio social? Argumentam os hansenologistas que a forma tubercolóide pode passar sem diagnóstico mesmo por clínicos famosos, mas pergunto: quando a hanseníase chega a mutilar os pés e as mãos como foi descrito, ainda pode não ser suspeitada?
Não ignorando que várias outras patologias podem determinar a paralisia facial, fazem da mesma a chave do diagnóstico da Lepra Tuberculóide, completando o quadro das mutilações dos dedos. Mas podemos questionar paralisia facial bilateral, como está em Rodrigo Bretãs, não é o que se espera da lesão do VII pela hanseníase, nem tampouco as lesões bilaterais das mãos, parecendo simétricas no relato de Bretãs.
Mas outros argumentos ajudam a questionar esta hipótese: 1º) não foi nem mencionada pelo biógrafo, por seus informantes e pela nora. E a lepra era freqüente em Vila Rica, conhecida de médicos e leigos. 2º) não foi mencionada nem 40 anos depois da morte do artista por informantes do biologista Auguste ST Hilaire que esteve em Congonhas em 1817/18, se informando sobre o autor daquelas estátuas de profetas, que, aliás, não apreciou. Informaram-lhe, pelo contrário, sobre a cardalina… 3º) Todos os viajantes que se referem ao Aleijadinho só se referem aos aleijões das mãos, perda de dedos e, alguns, até perda das mãos; Mas ninguém se refere à lepra – doença estigmatizante conhecida desde os tempos do Antigo Testamento.
Acidente Vascular Cerebral
José Mariano Filho foi o primeiro estudioso a mencionar esta hipótese. Diante da descrição dos últimos 2 anos de vida em que passou entrevado, em um catre, com “metade do corpo chagado”, estado em que ficou ao ter sido abandonado por seu escravo Justino, deixando-o sem os cuidados diários de que necessitava as vésperas do Natal 1812. A ingratidão de Justino, a quem Antônio Francisco ajudava aos 82 anos, no desenho e feitura de altares da Igreja do Carmo de Ouro Preto marcou-se nas artérias cerebrais do Mestre, que se obstruíram deixando-o com metade do corpo paralítico, com a face do estuporado conforme descreveu sua nora e as feições medonhas que acompanham os hemiplégicos que perdem também o poder da fala e se comunicam por grunhidos atemorizantes.
O acidente vascular suspeitável nesta última fase das doenças do aleijadinho não explicaria a paralisia facial. Mas se a lesão obstrutiva foi causada por endarterite sifilítica, esta patologia poderia ter sido a causa, também, da paralisia facial.
Porfiria cutânea
No complexo relatório de Rodrigo Bretãs há um pequeno trecho, em que se conta que o artista usava chapéu e vestimentas adequadas para protegê-lo do sol, Bretãs interpretou como parte da tentativa do artista evitar que o importunassem pelos seus aleijões e feiúra das feições. Preferia sair antes do sol sair e voltar depois do sol posto.
Este dado foi suficiente para que o professor Paulo Lacaz lançasse o diagnóstico de Porfiria Cutânea Tardia completando-o com a reportagem de “O Globo” referente aos ossos vermelhos na primeira exumação dos restos mortais de AFL em 1930. Esta hipótese empolgou, e não podia deixar de ser assim, o Dr. Geraldo Barroso que há anos estuda o relatório de Rodrigo Bretãs e está atento a toda pesquisa histórica sobre Vila Rica, S. João Del Rei e obras do Aleijadinho.
Adepto da hanseníase como causa principal, não deixa de lado a pesquisa de doença por defeito da síntese do heme, no caso a Porfiria secundária a alterações hepáticas, por álcool, drogas e… cardalina apesar de saber que nesta forma de porfiria não há manifestações neuríticas e somente deformações cutâneas pela foto-sensibilidade. Conseguiu obter autorização para a terceira exumação oficial (porque já se sabe de outra, “secreta”, feita pelo historiador inglês John Bury). Em reportagens freqüentes tem prometido esclarecer, definitivamente, esta possibilidade diagnóstica. Todos aguardamos estes resultados.
Concluindo, procuro demonstrar que a leitura critica e o estudo atento do excelente relatório de Rodrigo Bretãs e dos dados históricos que vêm sendo relatadas sobre a Vila Rica da corrida do ouro e do grande, genial criador do barroco brasileiro, AFL, que sua desventura de doenças se deu em duas fases diferentes de sua vida: o inicio súbito, aos 47 anos, interrompe suas atividades, o torna aleijado, transportado por seus escravos. Reabilitou-se e prosseguiu em atividade artística admirável, intensa, até aos 82 anos. Nesta idade, por um grande desconforto causado por um auxiliar ingrato, fica hemiplégico e se recolhe aos cuidados da nora por dois anos.
O primeiro episódio, por suas características, atingindo-o pelo gozo de saúde na fase mais produtiva de sua vida, deve ter sido causado por grave acidente do trabalho que o aleijou das mãos, joelhos e pés. Mas não foi capaz de paralisar o gênio criativo do líder dos artistas mineiros. Este acidente pode ter sido motivado pelo uso de entorpecente.
O segundo, final, melancólico, se deve provavelmente à Sífilis que contraiu na juventude como se pode suspeitar pelos seus “excessos venéreos”.
Se os ossos vermelhos puderam mesmo ser identificados como de AFL, uma terceira doença pode tê-lo atormentado, a porfiria.
Cientificamente aguardo que o desenvolvimento das pesquisas possa corrigir ou confirmar esta proposição, pois sei que nenhuma assertiva científica é absolutamente certa. Mas a atual hipótese pode ser a única aceitável no momento. E descobri algo muito importante sobre este artista genial: Germain Bazin, com toda a autoridade de Conservador do Museu de Louvre, assim aprecia as estátuas dos Passos da Paixão, de Congonhas “As mais belas efígies realizadas pelo Ocidente, as dos escultores dos séculos XVIII e XV franceses, de Gioto e dos imaginários espanhóis do século XVII, são aquelas que, num supremo equilíbrio entre o real e o ideal, se percebe o inefável mistério do Homem-Deus. Raros foram esses momentos. Alguns Cristos são muito humanos; outros, açucarados demais, não atingindo sua finalidade por excesso de abstração… Nos últimos anos do século “galante”, no momento em que a Revolução Francesa toma a Europa de assalto, num pais perdido, do outro lado do Atlântico, um mestiço, paralítico das mãos ainda por cima, produz esta obra sublime, a última aparição de Deus evocada pela mão do Homem!”
Geraldo Guimarães da Gama