MORTE E LUTO NAS GRANDES CATÁSTROFES (Parte 1)

    Evaldo D´Assumpção (*) – Médico e Escritor – 20-maio-2020

    Quando uma comunidade passa por uma grande catástrofe, a principal atuação das autoridades, como não pode deixar de ser, é avaliar sua extensão, procurando determinar as ações para que ela seja interrompida, se isso for possível, ou então para que suas más consequências não sejam ampliadas, tornando-a maior do que naturalmente já o é.

    Erros de avaliações, pressa em tomar decisões, preocupação com a opinião pública, especialmente pela ação e pressão dos meios de comunicação, quase sempre ávidos de escândalos e tragédias, são alguns dos obstáculos para se lograr êxito no trato geral do problema. Não se pode deixar de salientar também os interesses políticos e ideológicos, onipresentes e sem qualquer controle ético, portanto, sem qualquer preocupação com as consequências deletérias de certas atitudes, para com o bem-estar da população, e o equilíbrio econômico do país. Alegar que seu objetivo é a “vida”, como se ela não dependesse de trabalho remunerado (emprego), moradia adequada, saneamento básico, alimentação correta, assistência médica ampla e eficiente, e segurança, é mostrar, hipocritamente e sem qualquer pudor, o total desinteresse pela VIDA, no seu verdadeiro significado, na sua real amplitude e qualidade.

    A morte, por mais desagradável que seja falar sobre ela, é um elemento sempre presente nas grandes catástrofes, e que precisa ser bem refletida, avaliada, e, sem qualquer preconceito, até mesmo estudada. Só assim seu impacto emocional não irá agravar, ainda mais, os resultados desses eventos. Não só os imediatos, mas especialmente os tardios, as sequelas de condutas inadequadas tomadas pelos seus gestores, no trato das vítimas e seus familiares.

    Uma expressão muito comum ouvida nessas circunstâncias, é que fulano ou beltrano, vítimas fatais do acidente, “morreu cedo demais”. Era tão jovem, é comum ouvir-se. Contudo, esse é um conceito que deve ser reavaliado. Ninguém morre fora da hora, pois a morte está fora do tempo. Todos nós temos a hora certo de morrer, e essa hora é fácil de ser apontada, pois é exatamente agora. Afirmamos isso levando-se em conta de que ninguém consegue morrer “ontem”, tampouco “amanhã”, pois o primeiro já passou, e o outro ainda não chegou. Portanto, como para morrer a única condição exigida é que estejamos vivos, e se considerarmos que só estamos vivos “agora”, essa é, pois, a hora certa para morrermos. Se esse “agora” passou, e não morremos, teremos outros “agoras” para isso. Sei que dirão que esse um jogo mórbido de palavras, mas é a realidade. Com isso se quer dizer que as preocupações sobre “em que hora vamos morrer”, são absolutamente vãs, como aliás o são todas as “pré-ocupações”, pois são os inúteis sofrimentos e ocupações antes da hora. Melhor será se nos cuidarmos de ocupar sempre com esse momento que é o “agora”, no qual sempre temos o que fazer. Se fico atento (ocupado) com o que estou fazendo agora, com certeza o farei bem melhor do que se minhas atenções estiverem focadas no que poderá vir depois, num futuro imprevisível.

    Claro que isso não significa ser descuidado, totalmente desligado do depois. Afinal, o que faço agora terá continuidade num depois, e portanto, a ocupação com o “agora” não implica numa “despreocupação total” com o futuro. Planejamento, organização, instrumentalização, tudo isso é fundamental para o êxito de nossas atividades. Contudo, nas doses certas, e sem o mínimo descuido com o que é agora.

    Não acredito em coincidências, mas em “sincronia”, onde nossos planejamentos e atitudes, sincronizados, constroem nosso futuro, nosso sucesso. Todavia, como vivemos em sociedade (coletividade), nossas atitudes estão sempre interferindo e sendo interferidas, pelas, e nas decisões e ações dos que nos rodeiam, conhecidos ou desconhecidos. E todas estarão sempre sincronizadas, umas com as outras. Se faço algo inadequado, essa ação poderá interferir mais ou menos intensamente em ações alheias, produzindo nelas más consequências, às vezes até a morte de outros. Basta examinar as grandes catástrofes para descobrir que uma ou mais pessoas, em algum momento agiram inadequadamente, fazendo com que tudo aquilo acontecesse. E num processo sincrônico, algumas pessoas que estavam envolvidas, quem sabe em condições de um impacto maior do que outras, se feriram ou foram a óbito, enquanto as demais nada tiveram, ou apenas se feriram sem gravidade. Destino? Coincidência? Não creio, pois se assim fosse, a responsabilidade de muitos naquela catástrofe seria invalidada. Tudo teria ocorrido porque estava predestinado. Se assim fosse, seria retirado de nós, os humanos, toda a dignidade e o que temos de mais dignificante: o livre-arbítrio. Que é nosso, só nosso.

    Quando ocorre a morte, ocorre a perda, que é a mais significativa de todas elas. É o pai atropelado, é o filho baleado, são grupos inteiros soterrados num desabamento, famílias afogadas em enchentes, milhares de pessoas contaminadas por uma epidemia. Por que eles e não eu? Pergunta difícil de ser respondida pela lógica e pela razão. Mas acontece, e com frequência. Nesses casos, ao invés de perguntarmos, desesperadamente, “por que? ”, melhor será se mudarmos essa pergunta para “o que? ”. O que devo fazer, diante do que aconteceu? Não temos como voltar atrás, o tempo não regride, não conseguimos mudar nada. Mas a vida, para os sobreviventes, continua, e outras pessoas certamente dependerão deles. Não podemos nem devemos criar novas catástrofes. Isso não significa que “devemos ser fortes”. Não! Ninguém tem de ser forte diante de uma tragédia. Toda dor, física ou emocional, é real e deve ser cuidada, para que acabe. E, se for bem cuidada, com certeza irá acabar. Nessa condição em que vivemos, e que chamamos de “espaço-tempo”, onde tudo ocorre dentro dessas duas dimensões, não há nada que permaneça para sempre. Tudo tem princípio, meio e fim. Nada, absolutamente nada, é permanente. A impermanência é algo que permeia nossa realidade, sempre. Como então conviver com a dor imensa de uma perda, como elaborá-la para que acabe? Para isso, existe o que se chama “elaboração do LUTO”. Que veremos no próximo artigo.

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    (*) – Autor dos livros: “Sobre o viver e o morrer” (2011) e “Luto – como viver para superá-lo” (2018) – Ambos da Ed. Vozes, Petrópolis.