Evaldo D´Assumpção (*) 17/02/2021
Numa das minhas meditações matinais, sentado dentro do Anel de Ébano, formação de arrecifes negros na extremidade sul da Praia dos Castelhanos, longe do burburinho de veranistas e turistas, tinha os olhos fixos no horizonte delimitado pelo mar numa perfeita linha reta, e iluminado por mágicos raios solares. Voltei no tempo visualizando, nos arquivos mais profundos da minha memória, um grupo de 53 doutorandos posando para as últimas fotos antes de entrarmos para o palco da nossa formatura, na antiga Secretaria de Estado da Saúde, em frente o Mercado Central de Belo Horizonte. Era a noite de 8 de dezembro de 1963, e estava conosco o nosso paraninfo, Prof. José Feldman, um ícone da medicina em sua mais pura expressão. Como num filme feliz, passaram pela minha mente os seis anos do nosso curso médico, onde mestres como João Galizzi, Caio Benjamin Dias, Joaquim Romeu Cançado, entre tantos outros da mesma estirpe, nos ensinaram a ser MÉDICOS, e não técnicos em medicina. Cito-os, por terem sido os que nos ensinaram os três pilares fundamentais de nossa profissão, respectivamente Propedêutica, Clínica Médica e Terapêutica. Ou seja, como acolher, ouvir e examinar o paciente; como cuidar de sua moléstia; e quais os medicamentos e dosagens adequados para cada doença. E, juntamente com suas disciplinas, deram-nos o mais completo curso de ética e dignidade profissional. Sem dizer uma palavra a respeito, fosse ela majestosa, retumbante, ou imaginariamente convincente. Mas, tão somente pelo exemplo, postura pessoal, e respeito ao enfermo, seus familiares, e aos demais médicos que se envolvessem no tratamento do mesmo paciente.
Formados, alguns foram para o interior sem medo e sem maiores preocupações para cuidarem, com confiança, segurança e eficiência, os enfermos que deles necessitassem. Afinal, nossa formação fora impecável. Outros partiram para especializações em várias partes do Brasil e do Exterior. De volta, tornaram-se profissionais respeitados e competentes. Foram anos maravilhosos, com muita luta, muito esforço, muita dedicação, mas muitíssimas gratificações. Hoje, diversos desses 53 nos contemplam de onde estão, gozando dos frutos que plantaram, salvando vidas, curando doenças, consolando os que sofriam, sem quaisquer discriminações socioeconômicas. Alguns poucos ainda exercem a medicina, porém em ritmo dos Adágios de Albinoni e Bach. Outros, como eu, gozam de merecida aposentadoria, tendo como imaginário pano de fundo, a 9ª Sinfonia de Beethoven, mesmo sem termos recebido o merecido respeito pelos antigos empregadores oficiais. Mas, nem isso nos tira a paz e a certeza de termos cumprido a vocação que nos levou à Faculdade de Medicina da UMG.
E o que falo a seguir, de forma alguma se aplica a toda classe médica, pois detesto generalizações que são totalmente injustas, mas a uma “elite especial”, que por chamar tanto a atenção, parece a muitos, ser o estereótipo médico. Na nossa placidez de aposentados assistimos, estupefatos e impotentes, as mudanças na sagrada arte hipocrática. Que de atividade essencialmente humanista e misericordiosa, accessível e disponível para os que sofrem, para os carentes, passou a ser uma profissão recheada por tecnologias de ponta, de custos exorbitantes e por isso mesmo dominada por desmedidas ambições argentárias. Por vezes tenta-se justificar pela necessidade de adquirir e fazer a manutenção de novíssimos equipamentos de alta tecnologia. Outras vezes, porém, predomina o desejo insaciável do luxo, da ostentação, e o de exibir-se em eventos sociais e científicos. Nesses, com raras participações efetivas em sessões científicas. Boa parte dos que alcançam notoriedade possuem consultórios que mais parecem luxuosos escritórios de grandes executivos, decorados por refinados profissionais da estética ambiental, com o objetivo de impressionar os seus clientes, justificando seus astronômicos honorários. Nos estacionamentos dos prédios onde se localizam, e nas áreas para os médicos de alguns hospitais, só se vêm carros de alto luxo, rivalizando com os de seus milionários clientes.
Na prática clínica, novas estratégias, com nomes sofisticados ou anglicismos invasivos, passam a balizar o seu exercício: “medicina baseada em evidências” (caracterizando nobiliarquicamente a antiga propedêutica que o Prof. Galizzi nos ensinou); “soft skills” (nova denominação para gentileza, civilidade, habilidade e respeito no trato com as pessoas. Ou, resumidamente, ética e boa educação, num ressurgimento da matéria que aprendemos nos colégios, com o singelo nome de “Moral e Cívica”.). No que tange à tecnologia, são tantos os equipamentos que prefiro selecionar um, que para mim sintetiza todos os demais: o famoso robô Da Vinci, cirurgião de múltiplos braços mecânicos acionados por um cirurgião-biônico que fica a vários metros de distância do paciente, literalmente enfiado numa mini cabine. Ali visualiza tudo numa tela, enquanto manipula as mãos mecânicas do robô para fazer a cirurgia. O que permite até um cirurgião na Ásia, operar um paciente no Polo Sul. Aliás, um padrão da modernidade, onde médico e enfermo ficam o mais separados possível, por tomógrafos, ressonâncias magnéticas, e outras máquinas, tudo manipulado por técnicos, restando ao médico a olimpiana função de interpretar o que as máquinas lhe mostrarem como “evidências”, as quais irão indicar e iluminar os diagnósticos dos demais esculápios.
Concluo questionando para quem souber e puder responder-me: será que os humanos – enfermos e seus familiares, especialmente a enorme maioria incapaz de custear tais requintes – estão verdadeiramente felizes com essa complexa Tecnomedicina, à qual não têm qualquer acesso? Será que não sentem falta da conversa “olhos nos olhos”, nos modestos consultórios? Do exame apalpatório e auscultatório, onde o mais importante era o calor do toque humano? Calor esse que costumava curava mais do que as moderníssimas drogas? Quantas novas doenças ainda deverão ser “descobertas”, para a felicidade dos acionistas e donos das indústrias de equipamentos investigatórios e farmacêuticos? Quantos novos medicamentos inventarão, com preços que vão às nuvens, enquanto os antigos, ainda bem eficientes, serão excluídos, simplesmente por serem pouco lucrativos? Quantas novas pandemias precisarão ser “descobertas” para gerar bilhões de vacinas, a custo de trilhões de dólares, yens, rublos e Ren Min Bi (chinesa)? Por que ainda não estão pesquisando uma vacina contra a infelicidade? A frustração? O desânimo? E, quem sabe, vitaminas fortificantes para a felicidade? Para a esperança? Aldous Huxley deve estar morrendo de inveja por não ter inventado tudo isso em seu “Admirável mundo novo”…
Abusando da minha ‘octagenariedade’ (alguns poderão estar dizendo “senilidade”…), tento penetrar nesse castelo de segredos médicos-industriais-políticos e econômicos, quatro gigantes quase sempre de mãos dadas. Quem sabe lá vou encontrar uma gaiola de Faraday em que tentam prender Deus, e ocultar a dor dos humanos que querem continuar a serem as criaturas Dele, e não bonecos biônicos, com bytes, chips e nanochips a serem reparados.
(*) Da Academia Mineira de Medicina e da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores. Autor dos livros “Sobre o viver e o morrer”, “Luto”, e de dois volumes de suas memórias. CONHEÇAM E VISITEM MINHA “FOTO GALERIA VIRTUAL”, PUBLICADA QUINZENALMENTE EM MINHA PÁGINA NO FACEBOOK.