MACHADOPATIAS
A doença na vida e obra de Machado de Assis: parte 1
O obituário do periódico “O País” trouxe, na sua edição de 30 de setembro de 1908, a informação da morte daquele que “favorecido por uma cultura literária formidável e pela faculdade do trabalho abundante e fácil, deixara a maior obra saída da pena de um homem de letras brasileiro. Na poesia, no romance, no teatro, no conto, na fantasia, na crônica, em tudo ele brilhou intensamente. Nenhum trabalho, ainda que o mais insignificante, lhe saiu das mãos sem que tivesse o cunho definitivo do bem acabado”.
Começar este texto por uma referência mórbida soaria estranho, se não já o tivesse feito Brás Cubas, o autor defunto. Em 1881 ele enunciou, pelas suas memórias, a obra prima da literatura brasileira, escrita com “a pena da galhofa e a tinta da melancolia”.
Mas quem é, afinal, esse Brás Cubas? Um contraditório, ambicioso e retraído, vaidoso e displicente, apaixonado e indiferente. O primeiro dos tipos mórbidos em que Machado de Assis extravasou suas esquisitices de “nevropata”, expressão comum à época.
Menino pobre do Morro do Livramento, mulato, franzino, gago e epilético, Joaquim Maria Machado de Assis cultivou sua personalidade mórbida entre a pobreza digna da casa familiar e a opulência reluzente da chácara de uma madrinha protetora. A infância vivida nesse limbo de contradições ajudou a forjar sua personalidade, marcada pela estranha mescla de ambição pessoal e aceitação da hierarquia social, de convencionalismo e ceticismo, de conformismo e relativismo.
Sem educação formal, autodidata obcecado por instrução, começou a vida como tipógrafo aos 14 anos, passou a revisor, jornalista, cronista, tradutor, roteirista de teatro, crítico literário, mas é verdade que, até o realismo inquietante de Brás Cubas, produziu literatura previsível, confinada pelo padrão estético do romantismo europeu do século XIX. As Memórias Póstumas de Brás Cubas, mais do que inaugurar uma literatura genuinamente brasileira, representaram a inflexão do já notável trabalhador das letras para o gênio que dissecava almas humanas com ironia refinada e senso crítico quase sádico. Sim, há humor em Machado de Assis, verdade que meio trôpego em meio a tantas incógnitas, tão divertido quanto cruel, capaz de gerar risos e angústia a um só tempo.