A Esplenectomia Parcial: da Tradição à Modernidade
Acadêmico Marcelo Barroca Campos Christo
Introdução
Mitologia, fama e história se misturam nos registros dos primórdios da cirurgia esplênica. E, ao que tudo indica, na seqüência histórica da evolução da cirurgia do baço, as esplenectomias parciais foram praticadas, com sucesso, muito antes das esplenectomias totais. Referidas na magistral “A History of Splenectomy” de Mogenstern(31) e reportadas na “Fala Presidencial” de Sherman(51), na abertura do 39º Congresso da Associação Americana de Cirurgia do Trauma, como bem sucedidos acontecimentos cirúrgicos nos séculos XVI, XVII e XVIII e início do XIX, as esplenectomias parciais de “necessidade”, emergencialmente aplicadas ao tratamento de pacientes com extrusão do pólo esplênico através de largas feridas cutâneas, parecem ter nas secções transversais do parênquima esplênico a explicação desses extraordinários eventos cirúrgicos.
Muito mais recentemente, já no século XX, Volkmann (1923)(55), um cirurgião-anatomista da Universidade de Halle, precursor da cirurgia conservadora do baço, preconizava a preservação do órgão quando da remoção de lesões císticas e tumores benignos localizados e propunha, de acordo com os ensinamentos de Payr(38), a prática de “esplenectomias” para implantações intra-esplênicas de tecido tiroideano, para cursar o cretinismo. Considerava que o sucesso desses empreendimentos cirúrgicos estava na rigorosa obediência à regra de seccionar o parênquima esplênico usando incisões perpendiculares ao grande eixo do órgão, que por serem paralelas à distribuição dos vasos intraparenquimatosos, preveniriam a ocorrência de hemorragias graves. E, baseado no estudo anatomoradiográfico da distribuição intraparenquimatosa da artéria esplênica, afirmava que respeitados esses princípios, ressecções e suturas do baço seriam perfeitamente exequíveis. Referia-se a algumas experiências cirúrgicas bem sucedidas, defendia a conservação do baço, principalmente face às lesões traumáticas do órgão e fundamentava seu ponto de vista nos trabalhos de Schönbauer(49) que haviam demonstrado atraso na consolidação de fraturas ósseas em cães esplenectomizados.
Mas foi seguramente Henschen(20)(1928), um professor de Cirurgia da Universidade de Basiléia, quem mais se empenhou no estudo da cirurgia conservadora do baço e no desenvolvimento dos ensinamentos de Volkmann. Justificava seu empenho na conservação do baço, não só pelo fato de que as esplenectomias totais apresentassem um índice muito elevado de mortalidade — 72%, de acordo com o próprio Henschen —, mas também porque reconhecia ser o baço “um colaborador muito importante no combate às infecções”. Ensinava que o respeito às regras de Volkmann(55) eram o fundamento de corretas intervenções conservadoras sobre o baço (rafias e esplenectomias parciais), tecnicamente sempre bem sucedidas, se executadas de acordo com a “distribuição vascular interna do órgão”. No mesmo trabalho, referia-se a “esplenorrafias e a ressecções parciais” que teriam sido eventualmente praticadas por vários cirurgiões (Bardenheuer, Gussenbauer, Hafter, Spencer-Wells, Lamarchia, Sneguireff, Bircher, Wertel, Kutner-Herfarth), para o tratamento não só de lesões traumáticas, mas também de cistos benignos e angiomas. E, relatou ter ele mesmo realizado, com sucesso, a redução do tamanho de um “baço móvel”, por uma ressecção “em cunha” do parênquima esplênico, com tratamento dos vasos hilares correspondentes. Preconizou “bloqueios temporários” da circulação nos vasos esplênicos por ocasião do tratamento das lesões traumáticas, para permitir uma esplenorrafia segura. E, afirmou que, por um período de até dez minutos, essa interrupção circulatória seria perfeitamente tolerável e, ao mesmo tempo, suficiente para permitir uma segura “toalete” da lesão parenquimatosa. Descreveu, além das suturas convencionais, vários artifícios técnicos para garantir a eficiência das esplenorrafias, inclusive o do envolvimento do baço em “telas” montadas com catgut, fios de seda e epíploon ou fáscias. Advogava ainda a ligadura da artéria esplênica, como medida extrema para hemostasia, mas advertia para os prejuízos funcionais dela decorrentes. Registrou ainda que, de 34 esplenorrafias, de vários cirurgiões, 27 haviam sido bem sucedidas.
Anteriormente a Volkmann(55) e a Henschen(20), bem destacada e ilustrada por Morgenstern(31), a primeira tentativa de ressecção parcial do baço baseada em evidências anatômicas, parece ter sido a de Péan (1867 – Paris)(39) que, quando da remoção de um cisto benigno, tentou uma “ressecção segmentar controlada” do órgão(51). Quanto ao sucesso ou ao insucesso dessa cirurgia, os relatos parecem conflitantes(31,51).
A Sepse Pós-Esplenectomia
A tardia conscientização médica do valor imunitário do baço só encontra paralelo histórico na tardia conscientização ecológica do valor de certos ecossistemas, que só se tornaram visíveis após o entendimento de valores estatísticos que refletiam as conseqüências das suas destruições predatórias.
A aparente falta de tradução clínica para o papel funcional do baço, cuja ausência não implicaria em efeitos adversos, seja para a sobrevivência — imediatamente após sua remoção — seja para a qualidade de vida — tardiamente após as esplenectomias, representou, seguramente o mais persistente mal-entendido doutrinário, em toda a evolução do conhecimento médico.
Aceita como um fato consumado desde o século XVII(31, 51), a despeito de algumas contestações respeitáveis(20, 34), a desqualificação do baço permaneceu para os cirurgiões como um parâmetro de condicionamento profissional — e até mesmo de postura ética — até a última metade do século XX. E, esplenectomias totais eram eletiva ou incidentalmente praticadas para o tratamento de quaisquer lesões traumáticas e de algumas hemopatias ou, circunstancialmente, para “alargar ou facilitar” procedimentos cirúrgicos visando a cura de doenças malignas ou contíguas.
Especialmente diante das lesões traumáticas de qualquer gravidade, as atitudes dos cirurgiões eram determinadas não somente pela interpretação incorreta do papel funcional do baço, mas, acima disso, pela total desinformação sobre as características estruturais do parênquima esplênico. Havia a firme convicção de que, uma vez provocadas, lacerações no parênquima esplênico, muito provavelmente, não cicatrizariam. E, havia também a tradição, não só oralmente transmitida, mas registrada na própria literatura especializada(37), de que diante de um “baço traumatizado” o risco de graves acidentes hemorrágicos tardios, por progressão de um hematoma intra-esplênico ou sub-capsular, poderia ser o preço a ser pago pela adoção de condutas conservadoras.
Lesado, em qualquer grau, o baço era sempre considerado uma fonte potencial de catástrofes hemorrágicas e a esplenectomia no trauma era entendida como a mais eficiente medida preventiva, técnica e eticamente aceitável.
Este conceito permaneceu praticamente como uma verdade paradigmal, universalmente aceita, até a publicação do trabalho, hoje considerado como “um ponto de mutação” nos estudos sobre o baço, de King e Schumacker(24), em 1952, quando esses autores despertaram a consciência médica para a letal correlação entre a ausência do baço e a ocorrência de “infecções bacterianas fulminantes” (“overwhelming bacteremias”), em crianças que haviam sido anteriormente esplenectomizadas por esferocitose. Na mesma comunicação, esses autores enfatizaram a necessidade de que fossem empreendidos estudos mais abrangentes, a fim de confirmar ou descartar o relacionamento, que parecia muito mais do que fortuito, entre a remoção do baço e a ocorrência de infecções fatais. Nos anos imediatos, vários relatos de infecções pós-esplenectomia começaram a aparecer (Cole et al.: 1955(15), Gofstein et al.: 1956(19), Smith et al: 1957(53) e Huntley et al.: 1958(21) e, antes da primeira esplenectomia parcial realizada por nós, em agosto de 1959, já haviam sido reportados na literatura médica pertinente, mais de vinte casos de infecção pós-esplenectomia — inclusive após esplenectomia por trauma (53) — com uma taxa global de mortalidade estimada em 50%. A partir desses estudos iniciais, as pesquisas se multiplicaram. A evolução tardia dos indivíduos Di Dio, esplenectomizados passou a ser objeto de inquéritos sistemáticos. Um grande número de trabalhos foi publicado. E a difusa correlação entre a asplenia e a irrupção de surtos infecciosos de evolução fulminante, passou a ser suportada por valores numéricos. Desses inquéritos, por sua vasta abrangência e por sua extensa revisão, envolvendo pesquisas compartilhadas, a análise de Singer(52), publicada em 1973, tornou-se outro marco histórico na avaliação de riscos preditivos da sepse pós-esplenectomia. Extrapolações matemáticas das conclusões de Singer foram empregadas por alguns autores para dar ênfase ao real risco da morbidade e da mortalidade por infecções em diferentes grupos de indivíduos universalmente afetados pela asplenia e, variando de acordo com a diversidade de condições patológicas que justificavam a asplenia, taxas de aumento desses riscos foram estimadas como sendo de 50 até 200 vezes mais elevadas do que as da expectativa demográfica habitual.
A convergência dos dados publicados sobre a relação das esplenectomias com as infecções acabou por dar conteúdo crítico à denominada “Infecção Fulminante Pós-Esplenectomia” (“Overwhelming Postsplenectomy Infection – OPSI”), um quadro sindrômico, repetidamente referido por vários autores — bem sintetizado no trabalho de Krivit et al.(25) —atingindo pacientes asplênicos de todas as idades, caracterizado pelo início súbito, pelo curso fulminante e pela mortalidade elevada. Precisam ser ainda destacadas, como marcantes singularidades clínicas, o comportamento estranho e incerto quanto à previsibilidade temporal da sua ocorrência e quanto aos mecanismos desencadeadores da sua irrupção.
Morfologia do Parênquima Esplênico
Na década dos anos 50, orientados por Liberato Di Dio, então Professor Catedrático de Anatomia da Faculdade de Medicina da UFMG, um grupo de jovens médicos dedicava-se ao estudo da organização segmentar dos órgãos parenquimatosos, como tema básico para o estudo das possibilidades de ressecções parciais desses órgãos.
Tendo tomado conhecimento dos primeiros trabalhos sobre a imunodeficiência que se seguia à esplenectomia, ficamos convencidos de que seria vantajosa a preservação de baços atingidos por lesões traumáticas, desde que pudéssemos estabelecer bases técnicas para a cirurgia de remoção seletiva de territórios parenquimatosos atingidos ou, em outras palavras, para a prática de “esplenectomias parciais regradas” pela identificação dos segmentos anatomocirúrgicos do parênquima esplênico.
O passo seguinte foi o estudo anatômico. A distribuição terminal dos vasos intraesplênicos foi cuidadosamente estudada com a obtenção de “moldes” de acetato de vinil das artérias e das veias intraparenquimatosas, em 40 baços humanos, e da imagem radiográfica da distribuição intraesplênica das artérias, em 11 baços humanos (Figuras 1 e 2).
Com esse estudo foi possível demonstrar que o parênquima esplênico pode ser decomposto, do ponto de vista da sua morfologia macroscópica, em dois a cinco “segmentos”, separados por planos avasculares, independentes entre si do ponto de vista do suprimento sanguíneo e, que existe uma perfeita correspondência entre a irrigação arterial e a drenagem venosa dessas unidades. Basicamente, esses achados anatômicos se superpõem a descrições anteriores e posteriores às nossas, feitas sucessivamente por: Looten (1910)(26), Volkmann (1923)(55), Henschen (1928)(20), Astudillo (1939)(4), Bourret (1949)(5), Costa (1951)(16), Praderi (1955)(45), Huu (1956)(22), Parolari (1957)(36), Neder (1958)(35), Zappalá (1958)(56) e (1959)(57), Morgenstern (1997)(33) e Di Dio (1998)(17).
O Estudo Experimental
Subseqüentemente aos estudos anatômicos, desenvolvemos, no Laboratório*, uma pesquisa de esplenectomias parciais experimentais em cães, com a ligadura seletiva da artéria e da veia segmentar, que nos permitiu a secção do parênquima esplênico seguindo planos paucivasculares intersegmentares. Em autópsias pós-operatórias de 24 cães operados, nenhuma vez nos deparamos com acidentes hemorrágicos, do primeiro ao sexagésimo segundo dia do pós-operatório. Nossos achados experimentais confirmam as históricas observações de Assolant (1802)(3) e se superpõem aos achados de Huu (1956)(22) e de Zappalá (1959)(57).
As Esplenectomias Parciais
O perfeito conhecimento da morfologia do parênquima esplênico, associado ao sucesso das operações experimentais, permitiu o desenvolvimento de uma técnica operatória impecável que possibilitou a segura execução de ressecções segmentares de parênquima esplênico (Tabela 1 e Figura 3), em oito pacientes humanos atingidos por lesões traumáticas do baço, entre agosto de 1959 e julho de 1960(6-10), cujas caracterizações básicas estão resumidas na Tabela 1.
Tabela 1. Resultados das oito primeiras esplenectomias parciais em pacientes submetidos à exploração abdominal ou torácica por trauma (Hospital João XXIII, Belo Horizonte: 14 de agosto de 1959 a julho de 1960). Ver tabela completa na Academia Mineira de Medicina.
* Para fins didáticos, o baço foi sempre representado como composto por quatro segmentos.
** As toraco-freno-laparotomias eram empregadas, então, como rotina na exploração dos ferimentos envolvendo abdome e tórax.
Técnica e clinicamente bem sucedida, essa experiência pioneira significou o fim da “inviolabilidade cirúrgica do baço” (Morgenstern, 1997)(31), confirmou os pontos de vista de Praderi (1955)(45), Huu (1956)(22) e Zappalá (1958, 1959)(56,57) de que seriam exequíveis esplenectomias parciais, fundamentadas em sólidos princípios de morfologia e de experimentação e permitiu aplicar à cirurgia esplênica os conceitos de cirurgia preservadora de massa funcional — para corrigir anormalidades regionais — e de cirurgia redutora de massa funcional — para corrigir hiperesplenismos.
Novos Caminhos
As “esplenectomias parciais sistematizadas (réglées)” 6-11, 33, 47) ao mesmo tempo que serviram para desmontar mitos e tradições que contingenciavam a cirurgia esplênica(31), transformaram a preservação do órgão e/ou da imunidade por ele conferida, num alvo prioritário no manejo clínico do baço. Em conseqüência, novas práticas, intervencionistas ou não, mas visando sempre a conservação da integridade imunitária do baço, foram sendo paulatinamente introduzidas na prática clínica corrente.
E, entre os anos 60 e os anos 90, importantes medidas preservadoras do baço evoluíram de procedimentos experimentais para rotinas clínicas. Desta forma, procedimentos tópicos(32), condutas não intervencionistas(54), esplenorrafias(28) e, muito mais recentemente, embolizações seletivas da artéria esplênica, combinadas com cirurgia laparoscópica(44), foram sendo paulatinamente introduzidas e incorporadas às rotinas do manejo do trauma esplênico.
Essas experiências pioneiras resultaram em dezenas de comunicações e trabalhos publicados, que marcaram o desaparecimento dos rígidos padrões de conduta que contigenciavam a abordagem terapêutica das lesões traumáticas do baço, e mudaram completamente o perfil da cirurgia esplênica no trauma.
E, ao finalizar o século XX, dezenas de cirurgiões, trabalhando com centenas de pacientes atingidos por lesões traumáticas, já haviam adotado o salvamento do baço como meta eletiva. E, de acordo com dados extraídos por nós da literatura pertinente até 1997(6), de 4.076 baços abordados, 1.891 deles (46%) puderam ser conservados, com o emprego de ráfias e/ou esplenectomias parciais. E mais, a preocupação com a salvaguarda da imunidade esplênica acabou por transformar a auto-transplantação de tecido esplênico de curiosidade experimental em rotina circunstancialmente eletiva(43, 48).
No manejo dos pacientes com distúrbios hematológicos e/ou hiperesplenismos, as esplenectomias parciais, identificadas como potencialmente capazes de atingir múltiplos alvos, passaram a ser intensamente testadas.
Seria problemático e dispersivo tentar a abordagem de todos os caminhos até aqui trilhados, mas a análise de experiências reportadas permite a identificação de algumas metas já atingidas.
Em 1966, Morgenstern(29) inaugurava o emprego das esplenectomias parciais no tratamento das doenças hematológicas, ao executar com sucesso uma esplenectomia parcial subtotal em um paciente com mielofibrose.
Foi a partir de 1975, que tivemos a oportunidade de, com a Clínica Hematológica, tratar um grupo heterogêneo de quinze pacientes com doenças hematológicas, nas quais esplenectomias parciais subtotais foram indicadas para alívio sintomático de hiperesplenismos (esplenectomia parcial sub-total, com conservação do segmento polar superior e dos vasos hilares correspondentes) (Figura 4). E, para facilitar a análise dos resultados obtidos(11, 12), distribuímos os pacientes em módulos de acordo com a característica clinicamente predominante na leitura dos resultados obtidos (Tabela 2): 1º módulo: 9 pacientes, entre 6 e 54 anos de idade, portadores de Doença de Gaucher tipo 1 ou de Mielofibrose, com esplenomegalia maciça, hiperesplenismo e “qualidade de vida” em rápido declínio; 2º módulo: 5 pacientes, entre 04 e 10 anos de idade, portadores de Púrpura Trombocitopênica Idiopática, com baços de tamanho normal, trombocitopenia e fenômenos hemorrágicos; 3º módulo: 1 paciente, com 2 anos de idade, portador de Leucemia Mielóide, com esplenomegalia maciça e dor intensa.
Dessa pequena série foi possível concluir definitivamente que ressecções parciais sistematizadas do parênquima esplênico são técnica e seguramente exequíveis, mesmo em baços muito volumosos (figura 4). Quanto aos resultados, parece fora de dúvida que, do ponto de vista clínico, a esplenectomia subtotal proporcionou aos pacientes de Doença de Gaucher do tipo 1 e de Mielofibrose uma evolução pós-operatória caracterizada por melhora muito importante da “qualidade de vida”, embora a progressão da doença e do crescimento do remanescente esplênico tenham sempre dominado a evolução tardia. Nosso “follow-up”, em alguns desses pacientes, estendeu-se até por 17 anos.
Quanto às crianças com Púrpura Trombocitopênica Idiopática é absolutamente seguro afirmar que a excelente resposta inicial à ressecção parcial do baço não foi capaz de mudar o curso da doença, só controlada após a exérese do remanescente esplênico (em média 12 meses após a esplenectomia parcial). Por outro lado, a esplenectomia subtotal foi capaz de proporcionar alívio muito importante da dor, nos três meses de sobrevida pós-operatória da criança com Leucemia Mielóide.
Tabela 2. Esplenectomias parciais hematológicas. Janeiro de 1975, Hospital Felício Rocho*, Belo Horizonte, MG
Diagnóstico Nº de casos Idade (anos) Óbitos hospitalares Seguimento pós-operat Resultado Clínico
Doença de Gaucher (Tipo I) 6 5 a 29 1 Até 15 anos Qualidade de vida
Mielofibrose Púrpura 3 6 a 57 0 Até 17 anos Qualidade de vida
Trombocitopênica Idiopática 5 5 a 11 0 Até 1 ano Recidiva (todos)
Leucemia Mielóide Crônica 1 2 0 3 meses Alívio da dor
*Em colaboração com Dr. Romeu Ibrahim de Carvalho.
Avanços tecnológicos vieram a desbancar os procedimentos cirúrgicos convencionais, na execução das esplenectomias parciais.
A drástica redução da morbidade, o acesso seletivo à artéria esplênica e aos seus ramos hilares, e a enorme acurácia do desempenho prático, tornaram a via endovascular um caminho muito atraente e seguro para a execução de técnicas iterativas de controle de hiperesplenismos, baseadas em evidências anatômicas.
Embolizações segmentares da artéria esplênica por cateterismo, sob anestesia local ou epidural e sedação, são hoje procedimentos confiáveis para o controle clínico e melhora da qualidade de vida, em portadores de Talassemia B(46) e de hiperesplenismos secundários a uma grande variedade de situações clínicas, seja em pacientes pediátricos, seja em pacientes adultos(50).
A segurança oferecida pela exatidão do diagnóstico da tomografia computadorizada, associada à laparoscopia e ao acesso endovascular à artéria esplênica, permitiu a execução de uma típica segmentectomia polar superior para tratamento de uma lesão traumática em paciente pediátrico e, abriu o caminho da laparoscopia para as esplenectomias parciais em lesões traumáticas(44).
A Disseminação
Embora convencido de que tinha de manter um grande esforço pessoal na pesquisa e na disseminação dessa nova prática que propiciava uma mudança radical das atitudes cirúrgicas em relação ao baço, parecia-me tarefa difícil fazê-la aceita e respeitada. Se por um lado, as “esplenectomias parciais” haviam significado para mim o cumprimento da mais importante tradição da excelência universitária: “uma tese acadêmica / um título universitário”; por outro lado, para ganhar vida autônoma, as esplenectomias parciais precisariam superar outra também sólida tradição universitária: “a de gerar ciência sem gerar informação” — um vício tradicional que tem servido para desqualificar a pesquisa acadêmica como valor prático, em todo o mundo.
A fim de quebrar as restrições estruturais que emperram a divulgação dos textos acadêmicos, adaptei o conteúdo de minha Tese: Esplenectomias Parciais Sistematizadas “Reglées” (155 páginas, 28 figuras, Editora UFMG, Belo Horizonte, 1961)(10) para a publicação de acordo com padrões universalmente consagrados de apresentação de trabalhos científicos, o que permitiu oferecer à crítica médica as bases anatômicas, experimentais e clínicas dos novos modelos de abordagem cirúrgica do baço, em relatos condensados e objetivos, publicados em português, espanhol, inglês e francês.
Nessa época, foram decisivos os corajosos apoios de Fernando Paulino e Jorge Jabour (Rio de Janeiro, Revista “O Hospital”)(9), e de Ricardo Finochietto (Buenos Aires, Revista Prensa Medica Argentina)(8,18), que propiciaram publicações em revistas e jornais médicos e apostaram na legitimidade ética e técnica dos novos valores propostos para pautar a conduta dos cirurgiões em relação ao manejo do trauma esplênico.
A minha tese acadêmica e todos os meus estudos e publicações adaptados para apresentações, foram levados a Congressos, Simpósios e Conferências e/ou Discussões Acadêmicas em Paris, Bucareste, Los Angeles, Cidade do México, Berlim, Goiânia e São Paulo (com Di Dio).
Na América do Norte, os primeiros passos para divulgação das nossas pesquisas e dos nossos resultados foram dados com ajuda de Liberato Di Dio (Figura 5). Na versão para o inglês e nas várias tentativas que fiz para que trabalhos nossos fossem aceitos para publicação em revistas de alcance internacional, pude contar com o apoio técnico, científico e, até diplomático, de Di Dio, que havia se transferido para os Estados Unidos. Mas os americanos resistiam à inovações propostas por nós. A “inviolabilidade cirúrgica do baço” — um mote cunhado por Morgenstern(31) para definir um dogma, historicamente sacramentado, sobre a conduta dos cirurgiões em relação à abordagem do baço — só seria vencida após um trabalho apostolar. É indispensável reconhecer que a aceitação internacional do novos modelos de abordagem cirúrgica do baço foi firmemente sustentada pelo prestígio e pelo trabalho apostolar de Leon Morgenstern (Cedars-Sinai Medical Center, Los Angeles) (figura 6), cujo apoio cordial, calcado em princípios científicos e éticos, somado às suas decisivas contribuições doutrinárias, técnicas e clínicas, tem de ser enfatizado. Seu capítulo “História da Esplenectomia”(31) consagrou definitivamente as “esplenectomias parciais” como um marco histórico na evolução da cirurgia esplênica(31).
No Brasil, foram os trabalhos de Wilson Abrantes e associados (Hospital de Traumatologia João XXIII, Belo Horizonte) e Andy Petroianu e associados (Faculdade de Medicina da UFMG), que possibilitaram a firme generalização de condutas cirúrgicas visando a preservação do baço. Abrantes e associados, adotando como conduta eletiva, esplenectomias parciais e outros procedimentos visando o salvamento de baços atingidos por lesões traumáticas(1, 2, 47), e Petroianu e associados(40-42, 48) propondo e executando cirurgias para correção de disfunções esplênicas com preservação de massa funcional.
Ao redigir esse trabalho não nos moveu a intenção de atualizar conhecimentos, mas sim de preservar a memória de verdades fundamentais e conhecimentos básicos, que permitiram expandir a manipulação cirúrgica do baço muito além das limitações até então reconhecidas.
A divisibilidade cirúrgica do baço ganhou forma concreta e se concretizou com as esplenectomias parciais “reglées” que, encaradas como foram concebidas, têm hoje um universo limitado de aplicações clínicas. Entretanto, foram capazes de iniciar um novo ciclo na cirurgia do baço. A “inviolabilidade do órgão” (31) havia sido vencida, e a “perspectiva de abordagens cirúrgicas do parênquima esplênico, sem risco de hemorragias incontroláveis, havia sido claramente demonstrada” (18), representando uma “mudança dramática(31) das atitudes cirúrgicas em relação ao baço. E, nos quarenta anos que se seguiram aos nossos relatos iniciais, pudemos verificar que as esplenectomias parciais — baseadas em evidências anatômicas — haviam sido capazes de alargar definitivamente as metas da cirurgia do baço(6, 11, 12, 23, 27, 29, 41, 42 e 47).
Nossos caminhos pioneiros percorridos através das técnicas cirúrgicas convencionais têm sido seguidos por outros com o emprego de técnicas não invasivas, laparoscópicas e endovasculares. E, no léxico médico — no exercício da arte e nos relatos tecno-científicos — as expressões “esplenectomias parciais”, “esplenectomias subtotais”, “esplenorrafias”, “manejo conservador do trauma esplênico”, “transplantes autólogos de baço”, “embolizações parciais esplênicas” e esplenectomias parciais laparoscópicas” — inclusive aplicadas ao tratamentos de lesões traumáticas (44) — passaram a freqüentar rotineiramente o vocabulário profissional. Novos padrões de habilidade cirúrgica e de comportamento clínico passaram a integrar — definitivamente — os usos e costumes da profissão médica.
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