2. A Relação Médico-Paciente e as Instituições: Acadêmico João Galizzi Filho
A relação médico-paciente é dotada de peculiaridades várias, dentre as quais destacam-se a individualidade do compromisso e os aspectos simbólicos muitas vezes de difícil percepção, o que pode afetar a dimensão em que são considerados. Entre os vários fatores capazes de influenciar na natureza e na qualidade da interação entre o médico e o paciente, com evidentes reflexos nas características da assistência à saúde, salienta-se o contexto institucional e político. É claro que diferenças marcantes existem entre a América Latina, a América do Norte e a Europa Ocidental, na estruturação das instituições sociais, na abordagem conceitual do binômio saúde-doença e nos perfis nosológicos. Em relação à América Latina, vale a pena lembrar que a saúde pública teve período considerado auspicioso na década de 1930, sob lideranças de idéias renovadoras para a época. Seguiram-se acontecimentos importantes como a revolução cubana, a fracassada revolução socialista no Chile, a revolução na Nicarágua, o advento da “Teologia da Libertação” e os progressos na educação e conscientização da população, incluindo, como no Brasil, as campanhas de vacinação. Daí resultaram discussões e definições de amplas políticas sociais em saúde e assistência médica, de determinantes sociais de doença e óbito e de interrelações entre trabalho, reprodução e ambiente, além de outros.
A análise da atual estruturação institucional da Medicina e da assistência à saúde, assim como de suas influências na relação médico-paciente deve considerar, entre outros, o sistema público de saúde, a clínica privada, o surgimento das empresas de prestação de serviços na área da saúde, as instituições hospitalares e as instituições de ensino superior, em especial as escolas médicas. A interrelação entre o médico e o paciente, pautada nos fundamentos hipocráticos e na tradição judaica-cristã de 25 séculos tem certamente sofrido profundas transformações. Princípios como “o direito do paciente à livre escolha” e a “vinculação entre paciente e médico” encontram obstáculos no atual sistema público de saúde, com perda da autonomia da escolha e uma impessoalidade que dificulta o estabelecimento de relações individualizadas e mais estáveis. Um exemplo corriqueiro é a referência ao paciente pelo número de inscrição ou como “o próximo da fila”, em detrimento de um tratamento personalizado pelo nome; este fato tem como contrapartida, o “médico do posto” ou “da empresa”. A distinção, nos ambulatórios, entre pacientes “particulares” – cada vez mais escassos -, “de convênio” ou “do S.U.S.” sugere uma indesejável diferenciação na qualidade da assistência e da relação médico-paciente. A assistência hospitalar, por outro lado, cada vez mais a cargo das indispensáveis “equipes médicas”, traz o risco de diluir o papel referencial do médico assistente. O advento das empresas de prestação de serviços na área da saúde, em especial as de planos de seguros, as de medicina de grupo e as de auto-gestão, significou a interposição de um terceiro agente entre o paciente e o médico. Passa, então, a ser o referencial maior na prestação do serviço médico: o paciente é “do plano tal”, assim como o médico é “de tal convênio”.
O grande progresso técnico-científico dos últimos decênios trouxe, por outro lado, um generalizado e insustentável encarecimento da assistência médica, desencadeando estratégias de mercado para contê-lo a qualquer custo. Assim sendo, a assistência à saúde passa a ser considerada como “mercadoria”, sendo seus beneficiários – os pacientes -, os “consumidores”. Os médicos e os hospitais são, neste sistema, os “provedores”. Economistas e consultores empresariais estão diretamente envolvidos na prática médica, em nome de empresas de prestação de serviços, interpondo-se entre o médico e o paciente e definindo padrões de conduta como racionalização de despesas, redução de riscos financeiros, protocolos de tratamentos e outros. Tais empresas decidem o teor e a qualidade do que será proporcionado aos “consumidores”. Os atos de escutar o paciente, exercendo a atividade intelectual e a sensibilidade de entender-lhe as reais necessidades, elaborar o diagnóstico e planejar a terapêutica realmente adequada estão sendo substituídos pelo uso de tecnologia impessoal, moderna e de fácil aplicação. Há, em consequência, gradual depreciação do trabalho médico, o que também conduz o profissional a modificações em seus padrões de conduta. Desfavoráveis condições de trabalho e de remuneração, aliadas a prática médica descuidada, transformam o profissional da medicina em fácil alvo de denúncias de erro profissional, cada vez mais frequentes e indiscriminadas, muitas vezes infundadas.
O ponto culminante de tais transformações foi a expansão do chamado “managed care”, exercido através de instituições empresariais e colocando em cheque os limites da autonomia de médicos e pacientes. Estimulando a participação cada vez maior dos últimos sobre as decisões médicas, acabam por comprometer a confiabilidade necessária a uma relação médico-paciente saudável, que pressupõe o respeito mútuo à autonomia, entre outros valores essenciais como a confiança, a sinceridade e a compreensão. Estas transformações podem ser claramente constatadas através de estudos sobre a evolução do “managed care” na América Latina, abordando sua expansão a partir dos Estados Unidos da América, com a entrada das principais corporações multinacionais de capital financeiro no setor privado de seguros e serviços à saúde, procurando assumir a administração de instituições estatais e ter acesso aos fundos de seguridade social médica. Tais manobras têm o apoio de agências internacionais de financiamento como o Banco Mundial, que condiciona os empréstimos a países latino-americanos à corporização e privatização dos serviços à saúde.
Tais mudanças estruturais no sistema de assistência médica têm certamente repercussões fundamentais nos padrões da relação médico-paciente, gerando questionamentos vários, como os de ordem ética nos modelos de atuação das instituições de “managed care”. É extremamente difícil a definição do que venha a ser o padrão ético de uma instituição com tais características, uma vez que os princípios que promovem a livre competição diferem em muito dos envolvidos na adequação da relação médico-paciente e na promoção do bem estar do indivíduo. As instituições de “managed care” objetivam prioritariamente alcançar metas econômicas que em muitas circunstâncias podem ser incompatíveis com os fundamentos clássicos da prática médica. Embora elevados padrões de qualidade e eficiência na assistência à saúde sejam sempre desejáveis, é muito importante que se analise a maneira com que tais metas venham a ser alcançadas. Ainda que princípios éticos possam ser aplicados ao “managed care”, as regras do mercado podem inviabilizá-los em vários aspectos. É possível que instituições de “managed care” sérias e bem estruturadas possam, num determinado momento, promover assistência médica de boa qualidade. É questionável, no entanto, que elas consigam, a longo prazo, faze-lo concomitantemente à redução de despesas e à promoção de acesso eqüitativo a uma assistência médica de qualidade, em que a relação médico-paciente seja preservada em sua essência maior. Este aspecto é particularmente importante em países menos dotados economicamente, em que ampla parcela da população de baixa renda corre o risco crescente de permanecer à margem de assistência médica apropriada. Tais desafios justificam a análise cuidadosa dos fatos que se sucedem na atualidade, inclusive com as experiências já em transcurso na América Latina, em países como a Argentina, o Brasil, o Chile e o Equador.
Outro aspecto importante a ser considerado é o papel atual das instituições de ensino superior na área da saúde, em especial as escolas médicas, na relação médico-paciente. Inseridas no panorama que acabamos de descrever, significativas transformações têm ocorrido no setor do ensino médico, responsável maior pela implantação dos alicerces dos padrões éticos da prática e da relação médico-paciente. Com efeito, a abertura indiscriminada de cursos médicos no último decênio, em sua maioria de caráter privado, ampliou para mais de 100 o universo de escolas médicas no Brasil, desconsiderando, quase sempre, as necessidades numéricas e qualitativas do setor. É sabido que, graduando quase 10 000 médicos por ano e com mais de 220 000 profissionais em atividade, nosso país apresenta uma proporção de cerca de 1 médico para 700 habitantes, quando a Organização Mundial de Saúde recomenda que haja 1 para cada mil habitantes. Profissionais despreparados e lançados em mercado de trabalho congestionado, concentrando-se nos maiores centros urbanos, acabam por submeter-se a desfavoráveis condições de trabalho e remuneração, com os previsíveis desdobramentos. Acrescente-se o fato de que mais de 30 por cento dos médicos formados no Brasil não conseguem acesso à residência médica, cifra que em vários estados supera os 50 por cento. Um outro relevante aspecto a ser considerado em relação à formação médica é a situação atual dos professores das escolas de medicina. Se por um lado torna-se freqüente a improvisação de profissionais médicos no mister de ensinar, os professores graduados enfrentam, por outro, o ônus da desvalorização da carreira, também submetidos a insuficientes condições de exercício da profissão e de remuneração. Some-se a isto um freqüente desinteresse pelas atividades de graduação em função de carreira mais atraente na pós-graduação.
Ressalvando-se as diferenças contextuais e temporais, a atual proliferação indiscriminada de cursos médicos no Brasil traz à lembrança o fenômeno acontecido no início do século XX nos Estados Unidos da América e no Canadá, o primeiro com uma população, à época, de 87 milhões de habitantes e o segundo com 6 milhões. Um panorama de 160 escolas médicas em funcionamento, atendendo a interesses prioritariamente lucrativos, com currículos não regulamentados, mal equipadas e com corpo docente de qualidade deficiente, diplomavam anualmente milhares de médicos de formação precária e acima das reais necessidades dos dois países. A partir de minucioso relatório sobre as condições de funcionamento de cada uma destas escolas, elaborado por Abraham Flexner e publicado como Boletim número 4 da Fundação Carnegie para o Avanço do Ensino, em 1910, teve lugar radical transformação no setor, apesar das resistências previsíveis, culminando com o fechamento de 94 de tais escolas nos anos subseqüentes. As instituições autorizadas a continuar em funcionamento foram submetidas a critérios como a vinculação a uma universidade ou a hospitais de ensino previamente qualificados. A capacitação técnica dos graduandos passou a ser avaliada por um processo designado como “State Board”, regulando a autorização para a prática da medicina na América do Norte. Este episódio, com os frutos obtidos sobre a qualidade do ensino, a relação médico-paciente e a assistência à saúde, enfatiza a importância de tomadas de posição sérias a respeito.
Resta fazer reflexão sobre o papel, em tão fundamental questão, de outro naipe de instituições: as entidades representativas de classe, em especial os Conselhos, as Associações, os Sindicatos e as Associações de Hospitais. Envolvidas em questões novas e complexas, tais instituições buscam redescobrir seus caminhos, de encontro às reais necessidades dos profissionais que representam, assim como das sociedades às quais prestam serviço. Diante do quadro de submissão aos interesses que priorizam o capital e de sujeição do profissional a condições de exercício inadequadas, com evidentes repercussões em sua prática, tornam-se imprescindíveis entidades representativas expressivas, que reflitam a união da categoria médica em função de objetivos comuns, assim como os anseios da comunidade por uma assistência à saúde competente, acessível e alicerçada em relação médico-paciente qualificada. Este parece ser o sentimento que emana, apesar dos obstáculos, do clamor cada vez mais enfático por uma “Ordem dos Médicos do Brasil”.
LEITURA RECOMENDADA
1. Bruhn JG. Equal partners: doctors and patients explore the limits of autonomy. J Okla State Med Assoc 2001; 94:46-54.
2. O autor discute as repercussões do “managed care” sobre os limites da autonomia e da confiabilidade recíprocas na relação médico-paciente.
3. Comissão de Ensino Médico da Associação Médica de Minas Gerais e Núcleo Regional de Minas Gerais da Abem. Documento: A situação atual dos professores das escolas médicas (no prelo).
4. Análise crítica da importância do professor de graduação na formação do médico e das dificuldades e distorções de sua formação.
5. Iriart C, Merhy EE, Waitzkin H. Managed care in Latin America: the new common sense in health policy reform. Soc Sci Med 2001; 52:1243-53.
6. Apresentação e discussão dos resultados do projeto comparativo de pesquisa “Managed Care in Latin América: Its Role in Health System Reform”, realizado por equipes na Argentina, Brasil, Chile, Equador e Estados Unidos da América. Aborda a exportação do “managed care” sobretudo dos Estados Unidos e sua adoção nos demais países citados.
7. Rocha JH. A saúde e você. Imagem Virtual Ed Ltda, Nova Friburgo/RJ, 1993: 44.
8. Livro que aborda grandes questões da assistência à saúde e do ensino médico, incluindo o problema da proliferação indiscriminada de escolas médicas no Brasil atual e na América do Norte no início do século XX.
9. Roncoroni AJ. Medical ethics in the world’s market. Hippocratic fidelity or enterprise fidelity. Medicina 2000; 60:82-8.
10. Análise crítica da chamada “crise da saúde” e do impacto das “Health Maintenance Organizations”, priorizando os aspectos econômicos, na qualidade da assistência à saúde e da prática médica, na atualidade.
11. Waitzkin H, Iriart C, Estrada A, Lamadrid S. Social medicine then and now: lessons from Latin América. Am J Public Health 2001; 91:1592-601.
12. Estudo da evolução da medicina social na América Latina, assinalando as diferenças históricas e conceituais em relação ao mundo de língua inglesa. São abordados os resultados de políticas administrativas sobre assistência à saúde, determinantes sociais de saúde e óbito, interrelações entre trabalho, reprodução e ambiente, e impacto da violência e do trauma.
(Trabalho publicado na revista “Clínica Médica”, da Sociedade Brasileira de Clínica Médica).