Pseudoartrose congênita da tíbia uma nova técnica cirúrgica – 1998

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    Data de publicação: 05/05/1998

    Pseudoartrose congênita da tíbia
    uma nova técnica cirúrgica

    Marcio Ibrahim de Carvalho

    RESUMO
    12 casos de pseudoartrose congênita da tíbia foram estudados e acompanhados até o término do desenvolvimento ósseo, em média 11,6 anos.
    11 casos foram operados pela técnica descrita que usa um enxerto pediculado de osso e periósteo, obtido na outra perna, que é mantida cruzada.
    Um caso foi operado por outra técnica e sua evolução foi comparada com a dos outros.
    Para avaliação da técnica foi realizada uma revisão da literatura.
    Em 73% dos casos os resultados foram bons ou satisfatórios e em 27% foram maus.

    INTRODUÇÃO
    A pseudoartrose congênita da tíbia é uma doença rara. Com incidência de um caso para 150.000-200.000 mil nascimentos vivos (Delgado – Martinez et al. 1996, Paterson, 1989).
    Em 1930, Camurati publicou um trabalho com 160 páginas fazendo uma revisão completa da literatura. Consegui rever 118 casos relatados na literatura, em 182 trabalhos. Chama a atenção para a raridade da patologia observando que para cada pseudoartrose há cem luxações congênitas do quadril, e comenta que a maioria dos médicos não tem a oportunidade de ver nem um só caso em toda sua vida profissional.
    Apesar de sua raridade são inúmeros os trabalhos publicados sobre o assunto nos últimos 200 anos. Morrissy em artigo editorial comenta, que na realidade, até 1891 a doença era desconhecida. Baseia essa conclusão pelo teor dos trabalhos que até então a descreviam como curiosidade ou relatos de monstruosidades. (Camurati 1930, Morrissy, 1982).
    As causas evocadas tinham o caráter especulativo: susto da gestante, sífilis óssea e assim por diante. A lesão óssea era considerada e descrita como fratura intrauterina. O advento da radiologia proporcionou uma idéia melhor do defeito no osso. Os trabalhos dos europeus – Reichel 1903, Gasné 1907 e Codivilla 1907, touxeram contribuições sobre a patologia e tratamento com mérito científico. Porém, a etiologia permanece confusa até hoje. (Aegerter 1950, Morrissy et. Al. 1981, Baker et al.1992 e Gilbert e Brockman 1995). Em cerca de 50% dos casos há correlação com neurofibromatose (Boyd e Sage 1958, Masserman et al. 1974).
    As manifestações clínicas são variadas, e segundo alguns autores essas, quando diferentes, têm prognósticos diferentes (Boyd e Sage 1958, Roach et al. 1993, Gilbert e Brockman 1995, Hagon, 1982). Outros autores como Morrissy 1982, Gilbert e Brockman 1995, Baker 1992, acreditavam que aspectos diferentes representam somente épocas diferentes da evolução com a progressão da doença todos terminam com a mesma evolução clínica.
    O prognóstico é sempre reservado revisão realizada pela clínica Mayo; (Masserman et al. 1974) em 58 casos, só houve consolidação em 33% dos casos e 3 foram amputados. Em editorial do simpósio, publicado pela “Clinical Orthopedics and Related Research” (1982), Morrissy afirma que a longo termo nenhum caso apresenta um resultado satisfatório.
    O resultado do tratamento clínico é nulo. O tratamento cirúrgico que consiste essencialmente na remoção do tecido afetado e substituição por osso trazido de outra região-consegue que haja consolidação óssea. Como porém a doença básica é a incapacidade local de formar osso, o enxerto termina sendo absorvido e substituído por tecido fibroso . O resultado final só pode ser avaliado após o término do crescimento ósseo.
    Como o osso apresenta plasticidade, é passível de angular-se em antecurvato durante o crescimento; mesmo sem haver fratura. A fixação intra-medular, incluindo o tarso, proposta por Charnley em 1956 hoje é aconselhada pela grande maioria de autores – (Anderson et al. 1922, Baker et al 1922, Van Nes,1966, Paterson 1989). O método de Ilizarov (compressão dos fragmentos). O enxerto pediculado já proposto em 1903 por Reichel e por Farmer em 1951 é considerado a melhor maneira de “importar” um osso que sobreviverá porque ele é tranportado vivo e com o seu periósteo. (Coleman e Coleman, 1994.).
    O enxerto livre da fíbula vascularizado com recurso de micro-cirurgia é o método mais usado ultimamente, mas devido à complexidade da operação, refraturas e principalmente distúrbios do tornozelo do lado do doador, não tem sido recomendado como primeira escolha pela maioria dos autores (Smit et al.1993, Gilbert e Brockman 1995, Zumiotti e Ferreira 1994, delgado – Martinez et al 1996, Paterson 1989, Pho et al. 1985, Hagon et al. 1982, Minami et al. 1987, Omokawa et al. 1996).
    Assim julgamos válida a apresentação da técnica que consiste em transplantar um fragmento de osso vivo, vascularizado por um pedículo. Teoricamente a sobrevivência dos osteócitos seria próxima de 100% e o periósteo sadio asseguraria o desenvolvimento fisiológico do tecido ósseo não só transportado, mas também do hospedeiro. No enxerto livre esponjoso essa sobrevivência é de 25% e no cortical de aproximadamente 2%.

    CASUÍSTICA
    Entre 1973 e 1984 foram operados consecutivamente 12 pacientes com pseudoartrose congênita da tíbia. 9 pacientes foram operados no Hospital Felício Rocho, 1 no Hospital da Baleia (M.D.S.). Os pacientes G.M.V. e C.C.J. foram operados no Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás. O enxerto pediculado com perna cruzada foi realizado em 11 pacientes. O paciente, S.F.A foi operada aos 3 meses de idade, com antecurvato da tíbia, recebendo enxerto livre como profilaxia de fratura.
    No paciente P.T.M.C. a haste cortou o fragmento distal, o que exigiu nova operação. Os pais preferiam levá-lo aos EEUU para a nova operação. Não mais acompanhamos o paciente a não ser à distância e seu resultado foi considerado mau. A idade dos pacientes variou de 3 meses à 9 anos. 7 eram do sexo feminino e 5 do masculino. Em 5 houve concomitância de neurofibromatose. Todos os tipos de pseudoartrose, de acordo com a classificação de Boyd (1985) foram encontrados. A paciente S.F.A foi classificado como Tipo I – a evolução posterior mostrou ser Tipo II. O tempo médio de acompanhamento foi de 11,6 anos. Como a idade média foi de 4,9 anos, todos completaram o amadurecimento ósseo.
    A paciente S.F.A a última a ser operada em 1984, foi revista em fevereiro, 1998, com 14 anos e as epífises da tíbia já estavam fechadas.
    Caso nº7 – A haste intramedular deslocou-se. O paciente preferiu ser reoperado em Salt Lake City nos EEUU. Não mais o acompanhamos.
    Caso nº12 – A paciente foi operada aos 3 meses. Na época foi classificada como Tipo I e realizada enxertia profilática. Evoluiu par Tipo II, foi feita fixação intramedular de tíbia que nunca chegou a fraturar. A fíbula desenvolveu pseudo-artrose. Nesse caso não foi realizado o enxerto pediculado.

    MÉTODO
    A técnica cirúrgica proposta consiste na remoção ampla de todo o tecido anormal – osso, periósteo, fascia e tecido fibroso que envolve a área afetada. Isso é feito através de uma incisão em “U” invertido, na face anterior medial da tíbia sobre a região afetada. A seguir os ossos são reduzidos e fixados com haste intramedular interessando o tarso.
    Sobre a perna boa é realizada uma incisão em “U”, imagem em espelho da outra. Na porção distal da incisão é realizada uma extensão longitudinal formando um “Y”.
    Essa incisão interessa a pele e o tecido sub-dérmico. A seguir é aprofundada preparando-se um retalho de base proximal, interessando o periósteo e uma camada fina de osso – 3 à 4 milímetros. O retalho de periósteo é o mais amplo possível.
    A seguir as pernas são cruzadas. O retalho doador cobre a região afetada e o retalho da perna receptora cobre a região cruenta doadora. Antes do fechamento o enxerto ósseo é retirado da crista ilíaca e colocado sobre a área operada. Essa posição será mantida pr 20 dias.
    Quando os retalhos serão liberados e retornados à sua posição de origem, após a retirada dos fios de fixação. A liberação do retalho doador é realizada superficialmente em relação ao periósteo, que juntamente com o osso vivo permanecerá fazendo ponte entre as extremidades ósseas. Nessa ocasião se observa abundante neo-formação óssea, proveniente do retalho doador.
    O paciente a seguir é imobilizado em aparelho gessado longo. Tão precocemente quanto tolerada a marcha é iniciada. O aparelho gessado é então substituído por um curto ou tutor, como aconselhado por Sarmiento (1974) para tratamento funcional das fraturas.
    RESULTADOS
    Em 11 pacientes operados, com a técnica de enxerto pediculado, 8 consolidaram com a primeira operação. No paciente P.T.M.C. (nº7) a haste intramedular não havia sido colocada através do tarso (na tentativa de poupar as articulações do tornozelo) e cortou através do fragmento distal. A família optou por continuar o tratamento nos E.E.U.U.. Esse caso só foi acompanhado a distância. Foi considerado mau resultado.
    O paciente F.F.M.B. (nº2) já havia sido submetido a 2 operações. Não foi conseguido bom contato entre o enxerto e o fragmento distal. Houve necessidade de outra intervenção cirúrgica para conseguir-se a consolidação. Foi classificado como mal.
    O paciente O.M.S.D. (nº6) era portador da forma cística de pseudoartrose, e também já havia sido operado por 2 vezes. Não conseguimos enxerto autógeno em quantidade suficiente para preencher os espaços vazios. Houve necessidade de mais duas operações até se obter consolidação, o que aconteceu com grande encurtamento. Foi também considerado mal resultado.
    Na paciente M.A M.P, (caso 8) houve boa consolidação. Na tentativa de preservamos as articulações do tornozelo a haste foi retirada antes do amadurecimento ósseo completo. Embora com consolidação óssea houve desvio em valgo e antecurvato.
    A paciente M.D.S. (Nº5) apresentou encurtamento grande. Foi realizado um alongamento pela técnica da Monticelli (1981) e o resultado final foi bom. O paciente F.C.R. (Nº11) após cerca de 5 anos, não mais compareceu ao seguimento. Só o vimos novamente aos 15 anos.
    As hastes estavam quebradas ao nível do tornozelo. A movimentação do tornozelo estava diminuída, mas indolor. O paciente pratica esportes e tem vida normal. O caso foi considerado bom.
    A paciente S.F. A (nº12) não apresentava fratura aos 3 meses quando consultou. Foi classificado como tipo 1 de Boyd e o tratamento foi enxerto profilático na concavidade da tíbia. A evolução mostrou que a doença era do Tipo II. Houve deformidade em valgo. Foram necessárias 2 outras operações de enxerto livre e fixação intramedular. A tíbia não chegou a fraturar, na fíbula instalou-se a pseudoartrose. Não foi realizada a técnica de enxerto pediculado.

    DISCUSSÃO
    A primeira descrição minuciosa do tratamento cirúrgico da pseudo-artrose congênita foi feita por Reichel em 1903, em congresso de cirurgia em Berlim. O foco foi desbridado e osso foi transplantado da extremidade proximal da tíbia e fixado e a família chegou a pedir a amputação em um dos casos.
    Nos 100 anos que passaram desde a primeira operação de Reichel, a evolução dos casos não tem sido muito diferente. Em 1981 Morrissy et al; publicaram um trabalho de revisão de 40 casos operados nas Universidades de Harvard, em Boston, e na Universidade do Canadá, em Toronto – 2 centros de vanguarda na Ortopedia Infantil. Desses 40 casos, 14 foram amputados. O índice de consolidação foi de menos de 50%, exceto com procedimento de Farmer (1952) que conseguiu 55% de consolidação. Esse trabalho mostra a precariedade dos conhecimentos sobre a pseudoartrose congênita.
    Para prevenir a recidiva todo o tecido patológico, osso, periósteo e tecido fibroso devem ser ressecados no momento da osteossíntese. (Aegerter 1950, Delgado – Martinez et al. 1996).
    Desde o inicio do século, a imobilização prolongada é aconselhada por todos os autores ao longo dos anos, Reichel 1903, Codivilla 1907, Boyd e Sage 1958 Morrissy 1982, Paterson 1989, Huang e yip 1997. As complicações advindas dos diversos métodos de imobilização foram contornadas por Charnley em 1956, quando propôs a fixação com haste intramedular através do tarso. Essa haste deve permanecer até o término do crescimento ósseo, impedindo angulações e dificultando refraturas. Van Nes 1966; Anderson e al 1992, Baker e al, Coleman e Coleman 1994.
    Essa tendência a recidiva exige que o resultado de uma observação só seja concluído após o término do crescimento Baker el at 1992, Murray e Lovell 1982. A corrente eletro-magnética para estimular a osteogênese foi tentada na pseudoartrose congênita a partir de 1981 com Basset et al. Posteriormente outros como Paterson e Simonis 1985, usaram o método, mas pouco foi acrescentado à capacidade da osteogênese.
    Outro método tentado com entusiasmo inicial foi o emprego da compressão dos fragmentos com o instrumental de llizarov. Embora usado desde 1971 por llizarov na Sibéria (Damsin et al. 1996) o método só foi conhecido no Ocidente há pouco tempo. Delgado-Martinez, 1996, Huang 1997 e yip, 1997. É reservado para casos especiais, quando o encurtamento, é muito grande, pois permite o transporte do osso para alongamento.
    Nós usamos o alongamento proposto por Monticelli et al., em um dos nossos casos. Nossa escolha baseou-se na sua maior simplicidade, o resultado foi excelente.
    Porém, a grande inovação no tratamento da pseudoartrose congênita foi proposta por Chen et al. Em 1979. – O transplante livre da fíbula, vascularizada com anastomose micro cirúrgica. Desde então vários relatos têm sido publicados com a técnica em várias partes do mundo (Hagon et al 1982, Pho et al 1985, Minami et al 1987, Smit et al 1993, Zumiotti e Ferreira 1994). A grande conquista do novo método é a importação de um osso vivo. Infelizmente a técnica é complexa e demorada. A fixação da fíbula é difícil. Assim a incidência de complicação a longo termo é grande. Fraturas tardias da fíbula, valgismo do tornozelo do lado doador. (Gilbert et al, 1995, Omokawa et al 1996). Muitos autores, como Paterson 1989 em trabalho de revisão aconselham o método só após 2 ou 3 tentativas com outra técnica. Alguns autores corelacionam os maus resultados ao tipo da pseudoartrose. (Aasserman et al. 1974, Boyd 1982, Roach et al 1983). Outros, como Morressy, em 1985, acreditam qualquer que seja o tipo, o resultado final é sempre mau.
    A raridade da patologia limita a experiência dos cirurgiões que a tratam. São poucos os trabalhos com cauística maior, como: Boyd e Sage 1958, 47 casos; Andersen 1976 da Dinamarca 46 casos; Camurati 1930, do Instituto Rizolli com 27 casos; todos provenientes de grandes instituições. O próprio Andersen aconselha em seu trabalho que esses pacientes sejam encaminhados a centros especializados.
    A displasia local do osso e periósteo reduz a capacidade de formar e de regenerar o osso. Assim os enxertos livres por mais maciços que sejam, terminam por serem reabsorvidos. É sabido que somente 25% dos osteócitos, do osso esponjoso, sobrevivem ao serem transplantados. A sobrevivência daqueles do osso cortical é de pouco mais de 2%. É fácil de compreender porque após a consolidação inicial os enxertos são reabsorvidos, quando se sabe que o leito receptor não é capaz de fornecer células novas para rehabitar o osso transplantado.
    Como consenso de toda essa exposição podemos afirmar que o objetivo atual do tratamento cirúrgico resume-se em 3 pontos: Ressecção ampla de todo o tecido comprometido na área de pseudoartrose. Imobilização prolongada por anos até a cessação do crescimento ósseio. O osso e periósteo transplantados devem ter vida, de modo que possam crescer sem dependência do leito receptor.
    Atendidos esses três pontos o paciente deverá ser observado até o término do crescimento para que o resultado possa ser avaliado de modo definitivo. Acreditamos que a técnica que propomos preenche perfeitamente todos esses itens.
    O nosso período de observação foi suficientemente longo para permitir que os resultados sejam considerados definitivos. A dificuldade de estabiliação dos retalhos com as pernas cruzadas, que limitavam o seu uso; foram completamente superadas com os métodos de fixação externa. (Mooney et al., 1998)
    CONCLUSÕES
    1. A pseudoartrose congenital da tíbia ainda é um desafio, tanto quanto à etiologia quanto ao seu tratamento.
    2. O transplante com enxerto vivo livre, por meio de microcirurgia é eficiente, mas exige tecnologia elaborada e lesa o lado são.
    3. A compressão interfragmentária com o instrumental de llizarov tem indicação ocasional como método complementar.
    4. Toda a área comprometida pela patologia deve ser amplamente removida no procedimento cirúrgico.
    5. A fixação intramedular deve ser empregada qualquer que seja a técnica cirúrgica. O tarso deve ser incluído para estabilidade do fragmento distal.
    6. O enxerto vivo pediculado com a perna cruzada e fixação intramedular é uma técnica eficiente e deve ter o seu lugar no armamentarium do cururgião ortopedista.