ARTIGO
Sofrimento e Medicina – Acadêmico José Carneiro Gondim
A arte médica tem suas bases históricas e sobrenaturais na máxima que lhe motivou a origem, antes da sua fase científica: “Como é divino sedar as dores”.
No pretérito e até mesmo na tradição bíblica, o sofrimento tinha uma conotação de purga imposta pelos deuses ou mesmo pelo próprio Deus de Abraão, criando o conceito de sacralização da doença, como forma expiatória dos males cometidos e previstos de pena.
Nesse raciocínio, a enfermidade é vinculada à pessoa, desconhecendo e menosprezando a vulnerabilidade da natureza humana, ante o meio onde vive e exerce suas múltiplas ações, trazendo o conceito de uma moléstia causada pelo próprio homem, estudada pela medicina antropológica e outra a que o homem está sujeito, analisada pela medicina clássica.
O conceito de saúde situa-se na negança à doença e ao sofrimento, buscada pelo homem que percebe que a moléstia fere sua esperança de imortalidade e lhe aproxima do seu fim que é a morte, mesmo que esta seja uma passagem para a plena libertação e a conquista da perpétua felicidade.
Fugindo dos aspectos escatológicos, pensamos que pela fé e não pela crença, o homem, na sua trajetória terrena, tem o sofrimento como um fator pedagógico para uma mudança de vida, na maioria das vezes para o caminho da perfeição cristã e tolerância fraterna.
O médico como partícipe das agruras humanas pode desenvolver um benéfico apostolado, na medida em que entregue sua vida, na realidade da sua imortalidade.
VAMOS REPENSAR AS UTI´s?
A morte, o acontecimento final que sucede na vida humana, representa o término do nosso tempo linear mensurável que, acontecida espontaneamente, corresponde à morte natural.
Com o evoluir da humanidade, as doenças passaram a ser cuidadas pelos médicos, constituindo a imagem da morte medicalizada.
Na medicina iluminista, Francis Bacon responsabilizou a arte de curar pela prevenção da saúde, cura da enfermidade e prolongamento da vida, sendo o pioneiro da geriatria, cuja finalidade é a de cuidar do geronto, ironizada por Montaigne, como o desejo de morrer de velhice.
Já da década de quarenta para cá, com o advento dos progressos das terapêuticas clínicas, cirúrgicas e actínicas, auxiliados pelos avanços técnicos dos aparelhos monitorizadores dos atos vitais do enfermo, veio a idéia da morte do tratamento obrigatório que, com os auxílios dos profissionais médicos intensivistas, enfermeiros permanentes e máquinas acopladas diuturnamente ao cliente, podem reverter a ação devastadora da morte, quando há mesmo pequenas reservas orgânicas.
Todavia, pelo exagero dessas instrumentalizações, foi criada por Ivan Illich a morte escamoteada que se contrapõe com a que deu origem à medieval ars moriende, pela maneira, algumas vezes vexatória, a que fica submetido o doente.
Desde os primórdios da instituição das Unidades de Tratamentos Intensivos que o Magistério da Igreja, ainda no ido e brilhante Pontificado de Pio XII, fez seu pronunciamento, criando uma semântica diferença entre o necessário e o impossível, aplicando o princípio do duplo efeito e do voluntarium in causa.
Todavia, com a secularização da sociedade, os deveres da consciência religiosa são postergados pelas obrigações da consciência científica, os encaminhamentos dos pacientes ficou atento aos interesses legítimos dos clientes, médicos e familiares. Dos médicos, que não desejam manter seus envolvimentos com o moribundo e dos familiares que se negam por falsa piedade, compartilhar com o fim dos seus entes queridos, ao nosso ver, oportunidade ímpar para uma profunda reflexão sobre a vida e a eternidade, a que somos destinados.
Assim, vemos serem admitidos, nessas Unidades, um homem que padece e um cadáver homem.
Os problemas em pauta não são só nossos. Todo o mundo experimenta as angústias dessas difíceis questões de prioridades.
Na Internal Medicine News de janeiro de 1996, o Dr. Charles Sprung da Universidade de Jerusalém, cobra decisões internacionais para que os leitos das UTIs estejam disponíveis para os doentes que provavelmente vão se beneficiar.
No Southem Medical Journal de 1995, o Dr. K. E. Oliver dos Estados Unidos, em entrevista com 40 médicos sobre a importância do valor da crença religiosa entre os médicos e seus pacientes, concluiu que 32% fizeram compartilhar sua crença com a deles.
Na Internal Medicine News de janeiro de 1996, o Dr. David Laison, também dos Estados Unidos, inquirindo 200 clientes sobre a participação dos médicos em assuntos religiosos, constatou que 77% nunca tocaram nesses termos com seus clientes.
Concluímos que a morte hoje será no local onde ela se der ou terá que acontecer em uma devassada divisória das Unidades de Tratamentos Intensivos, sem o calor dos familiares, assistida por funcionários médicos e enfermeiros que se revezam em turnos, sem nenhum vínculo afetivo, e na ausência do desejado conforto religioso.
A morte, mesmo cruenta, do Senhor Jesus foi acompanhada pelos familiares e amigos.
Urge repensar as UTI´s, proporcionando áqueles já com “fácies hippocratica” passem para a eternidade, que nos é garantida pela certeza da fé, no ambiente domiciliar ou hospitalar, com assistência da religião e dos que lhes são caros e que essas Unidades sejam usadas pelos que têm possibilidade de recuperação, sem serem agonizantes.
Vamos tentar minimizar a morte escamoteada do autor do livro A EXPROPRIAÇÃO DA SAÚDE – NÊMESIS DA MEDICINA, pois os homens que se alegram com o nascer e se entristecem com o morrer, tenham um adormecer digno e humano.
Espero não ter ressurgido à tradição pagã, imortalizada pela iconografia da Dança dos Mortos, musicada por Honegger e nem a visão da Dança Macabra do século XVI, gravada em madeira e com posterior música de Liszt e Saint-Saens e sim, retomando a essência da morte humana, num enfoque menos temporal e mais espiritual.
Acadêmico José Carneiro Gondim
(Chefe do Departamento de Toco-Ginecologia da Santa Casa de Misericórdia de Juiz de Fora)