Amilcar Vianna Martins
Ocupou a Cadeira 5, no período de 20/11/1970 até 01/02/1990.
O Prof. Amilcar iniciou sua vida profissional e científica em 1925 no Instituto Ezequiel Dias, a filial em Belo Horizonte do Instituto Oswaldo Cruz. A emergência da precoce vocação foi por ele mesmo descrita em 1983 quando, em conferência proferida no Instituto Ezequiel Dias, rememora o seu primeiro contato com a instituição: “Desculpem-me se me comovo e me vem lágrimas aos olhos, quando me recordo de um distante dia do mês de abril de 1925, quando um adolescente de 17 anos, ainda imberbe, penetrou em uma pequena e feia casa da rua da Bahia, com o mesmo respeito e o mesmo deslumbramento como se entrasse no mais belo e mais santo dos templos, pois era o templo da ciência, a casa de Oswaldo Cruz. Não poderia o jovem, de então, imaginar que era esse o dia decisivo da sua longa vida, o dia que iria determinar o seu destino e o seu futuro”. Foi nessas circunstâncias que conheceu pessoalmente Carlos Chagas e seus colaboradores Eurico Villela, Arthur Neiva, Magarino Torres e principalmente o seu fraternal amigo Emanuel Dias. A sua produção científica cobriu uma vasta gama de pesquisas acadêmicas e aplicadas que se estenderam por 55 anos. O seu primeiro trabalho, publicado em 1935, foi uma investigação de grupos sanguíneos de índios de Minas Gerais e nos anos subseqüentes realizou estudos sobre febre maculosa (uma rickettsiose endêmica em Minas Gerais), esquistossomose, doença de Chagas, escorpionismo, filariose, calazar e leishmaniose muco-cutânea. Em 1940 publicou em trabalho no qual descreveu 25 casos de doença de Chagas em fase aguda no oeste de Minas Gerais. Esse número de pacientes era maior do que o número total de casos agudos conhecidos até então e a sua descrição contribuiu decisivamente para a implantação do Centro de Estudos de Doença de Chagas em Bambuí, instituição que se tornou famosa pelos estudos clínicos e epidemiológicos da moléstia.
Entre todas as suas pesquisas, a sua última e mais prolongada afeição, foi o estudo dos flebótomos realizado no Centro de Pesquisas René Rachou da Fundação Oswaldo Cruz, em Belo Horizonte. Juntamente com a sua fiel e dedicada colaboradora Alda Lima Falcão publicou 64 trabalhos sobre a sistemática de flebótomos e descreveu 52 novas espécies. Sob sua orientação o laboratório de Leishmaniose do Centro de Pesquisas René Rachou, acumulou cerca de 70.000 exemplares de flebótomos, provavelmente a maior coleção do Novo Mundo. A sua atividade nessa área passou a atrair entomologistas interessados em transmissores da leishmaniose, de vários países da área endênmica, para estágios e programas de colaboração.
O Prof. Amílcar foi o inspirador e mentor da Escola de parasitologia que se formou em Minas Gerais. Como Chefe do Departamento de Parasitologia da Universidade Federal de Minas Gerais, fundador e Diretor do Centro de Pesquisas René Rachou, teve a clarividência de associar a duas instituições mediante pacto informal que perdura até os dias de hoje. Essa ligação criou as condições para que, sob sua inspiração, fosse implantado o Curso de Pós-Graduação de Parasitologia da U.F.M.G. através do qual as teses de Mestrado e Doutorado têm sido realizadas indistintamente nas duas instituições formadores de pessoal. No período de 1956 a 1961 ocupou os cargos de Diretor do Instituto Nacional de Endemias Rurais e do Departamento Nacional de Endemias Rurais, o precursor da legendária SUCAM. Aos que o conheceram pessoalmente sempre foi motivo de admiração a simplicidade e o despojamento com que, deixando esses importante cargos de administração pública, o Prof. Amílcar voltou às suas atividade acadêmicas de ensino e pesquisa dando um exemplo aos seus amigos e estudantes de modéstia e fidelidade à ciência.
Entre todas as suas realizações, a que mais o envaidecia foi a criação do atual Centro de Pesquisas René Rachou, fruto do seu prestígio pessoal junto ao então Presidente Juscelino Kubitscheck de Oliveira. Por ato do Presidente foi em 1956 o Instituto Nacional de Endemias Rurais (INERU), ao qual se atribuiu “realizar estudos e pesquisas” relacionadas às 13 endemias incluídas no âmbito de atividades do Departamento Nacional de Endemias Rurais. A lei que criou o INERU previa a existência de “centro de pesquisas regionais e um núcleo central situado na Capital da República (Rio de Janeiro) ou sua proximidade”. Através de seu prestígio, o Prof. Amílcar conseguiu que o “núcleo central” fosse situado em Belo Horizonte, juntamente com o Centro de Pesquisas, encurtando drástica e simbolicamente os 400 Km que separam Belo Horizonte do Rio de Janeiro… Esse episódio era com certa freqüência lembrado com nostalgia e bom humor como prova do seu apego ao nosso Centro (e o seu prestígio com o governo…)
A outra face do cientista, do naturalista e do líder, era a sua formação humanista demonstrada pela devoção à música erudita e a familiaridade com a literatura, traços pessoais só revelados aos amigos mais chegados. Conservacionista engajado e patriota preocupado com problemas sociais do país, tomou posições políticas claras e corajosas. Em 1944 alistou-se voluntariamente na Força Expedicionária Brasileira para combater o nazi-facismo.
Como capitão médico da reserva foi convocado pelo exército e, após curta permanência em Belém do Pará, seguiu para a Itália, ali permanecendo por toda a campanha da FEB. Voltou ao Brasil e, de acordo com seu depoimento, “ostentando algumas medalhas no peito e promovido a Major”, assistiu à queda da ditadura. Em 1969 foi compulsoriamente aposentado pela ditadura militar do seu cargo de Professor-Catedrático da Universidade Federal de Minas Gerais, conquistado em concurso público memorável. Sou testemunha da amargura e da altivez com que enfrentou as vicissitudes que se seguiram à sua aposentadoria. Durante os 10 anos que se seguiram a essa violência, o Prof. Amílcar empenhou-se em manter sua atividade científica, tendo sido consultor da Organização Mundial da Saúde em Genebra e participante de projetos de pesquisa no Peru e Venezuela. Sem entusiasmo pelas longas viagens aeronáuticas (temor que sempre o acompanhou) e resistente a afastar-se da sua família, composta da esposa e nove filhos, a aceitação dessas atividades no exterior foram ditadas em grande parte pela sua necessidade de mostrar aos ditadores da época o reconhecimento do seu prestígio internacional e a disposição de não se curvar ao autoritarismo. Trabalhando em casa, com a cobertura dos amigos fiéis e do Centro de Pesquisas René Rachou, continuou a pesquisar a sistemática dos flebótomos. Em 1978, juntamente com Paul Willians e Alda Lima Falcão, publicou uma monografia sobre American Sand Flies, um trabalho clássico, editado pela Academia Brasileira de Ciências.
Em 1979, aos 72 anos, recebeu o título de Professor Emeritus da universidade Federal de Minas Gerais. Era a derrocada do regime militar e o destino lhe reservara assistir, pela segunda vez, a queda de uma ditadura no país. Continuou trabalhando normalmente e, em 1990, aos 82 anos, quando faleceu, havia acabado de orientar a sua última tese de Doutorado.
Texto: Zigman Brener