Ética e Mídia – Marco Aurélio Baggio – 2005

    Data de publicação: 21/04/2005

    Ética e Mídia

    Acadêmico Marco Aurélio Baggio

    Resumo
    O artigo reafirma o conceito de ética médica como imprescindível código para o exercício da medicina. Correlaciona os mandatos da ética com o desempenho da mídia no que se refere à publicação de informações médicas de qualidade.
    Palavras-chave: mídia; informação; ética médica; paradoxos na prática médica.

    Abstract
    The article reaffirm the concept about medical ethics like necessary code for the exercise of the medicine. The author make correlation the ethics mandates with the performance of the media refer to publication of medical information of quality.
    Key words: media; information; medical ethics; paradox in the medical practice.

    A mídia trata os acontecimentos com base na imediaticidade dos fatos e, à medida que procura vencer a corrida contra o tempo e contra os meios de comunicação concorrentes, as informações perdem em profundidade ou em credibilidade. Quantas vezes se vêem desmentidos ou “correções” de notícias veiculadas ao calor do momento…
    O volume de informações disponível para o profissional da comunicação dobra a cada ano, a cada seis meses. Sério problema se apresenta então: como selecionar as notícias, quais delas merecem mais destaque ou quais devem ser analisadas com mais detalhes. Inúmeras opções se oferecem. Ao lado disso, surge outro problema. Como levar ao público determinada informação: tem ela base científica? Qual ou quais os organismos competentes corroboram aquela notícia? Devem ser divulgados todos os detalhes, todas as conseqüências de uma determinada descoberta científica? Que efeito terá essa descoberta nas relações comerciais internas e nas internacionais?
    Além dessas questões, outra se mostra determinante: o público está ávido por notícias. Venham as informações de onde vierem, a comunidade está ali, ansiosa, curiosa, à espera de um “fato novo” que as tire da sua monótona realidade.
    As pessoas acabam recebendo uma sobrecarga de informações de tal monta, que não têm tempo de digeri-las nem de distinguir “fato” de “opinião”. As notícias são assimiladas sem que passem pelo crivo da seleção do “verdadeiro”, do “falso”, do “escandaloso”, do “sensacionalismo”, da “propaganda”. Essa quantidade imensa de informações acaba por provocar nas pessoas uma espécie de stress que as leva a um estado de ansiedade, por não conseguirem assimilar todos os assuntos, todos os dias, toda semana.
    A liberdade de imprensa é imprescindível em qualquer país. O papel da imprensa é de inestimável importância para se manter o público informado sobre o que ocorre no país e no mundo. É essencial sua função na divulgação de fatos políticos, de corrupção nos órgãos públicos, de salários exorbitantes, de nepotismo, de exploração de trabalho escravo e de trabalho infantil, da situação caótica de hospitais e clínicas em diversas cidades do país, da violência nas prisões, das precárias condições de trabalho dos médicos e dos professores e de seus salários aviltantes, do baixo nível de aprendizado dos alunos da rede pública de ensino, da morte por inanição de crianças índias. E de outros mais.
    Além dessa função de fiscalizador da sociedade, a imprensa presta inestimável serviço com a divulgação de descobertas científicas, de avanços tecnológicos, de conquistas nas áreas médicas e de medicamentos, das descobertas de vacinas e de meios de combate às pragas. Mais recentemente, a mídia tem dedicado grande espaço às discussões em torno de células-tronco, de eutanásia e de outros procedimentos ligados à Medicina, os quais constituem um campo que exige atitude investigativa rigorosa por parte dos órgãos de imprensa.
    A cobertura jornalística de acontecimentos, de fatos científicos e de descobertas tecnológicas é, pois, atividade indispensável à formação da opinião pública e essencial para a democratização do conhecimento.
    A ética é a casa do homem. Prescreve ela os melhores modos de ele se comportar diante dos trabalhos que a vida lhe destina. Ela se organiza como um código de orientações que visa a poupar tempo, reduzir desgastes, prevenir insucessos.
    A discussão sobre ética pode ser considerada sob vários aspectos. Inicialmente, seria bom relembrar o conceito primitivo e gramatical do termo “ética”.
    A palavra “ética”, segundo o Dicionário Houaiss, vem do latim éthica, que significa “moral natural, parte da filosofia que estuda a moral”, que, por sua vez, vem do adjetivo grego éthikós, cujo sentido é “relativo à moral”, substantivado no neutro tà éthicá, “tratado sobre a moral”, conexo com o grego ethos, que significa “modo de ser, caráter, costume”.
    Ética, portanto, pode-se dizer de uma maneira simples, é um conjunto de princípios e de valores que norteiam e regulam as relações humanas. Ela se define pela cultura e estabelece regras de comportamento em todos os setores da sociedade. A ética está presente no relacionamento pessoal, nos negócios, nos comércios, nas profissões, na indústria, nas relações entre os povos e entre as nações. Ela existe, pois, sempre em um contexto social e cultural.
    Para Aristóteles, a ética faz parte da pessoa assim como a linguagem e a cultura. Ela é, pois, inerente à natureza humana. É ela que mostra ao indivíduo o caminho que deve percorrer, os preceitos que deve observar, a conduta que deve assumir.
    A adoção de um código de ética pelas diversas categorias profissionais traz vantagens inúmeras. O código estabelece normas a serem seguidas em determinadas situações, funciona como um guia para a tomada de decisões, prevê situações e a maneira como o profissional deve agir em determinadas circunstâncias, além de lhe assegurar direitos e independência para o exercício de sua atividade, ao mesmo tempo em que prevê as obrigações decorrentes da profissão.
    De todas as profissões, é a Medicina aquela que segue o mais antigo Código de Ética, situado a partir do juramento de Hipócrates. Seus preceitos impõem ao médico restrições e deveres para se obter comportamento digno, correto e decente. O simples juramento, no entanto, é inteiramente omisso no que se refere aos direitos e aos honorários decorrentes do bom exercício da proficiência e da arte da Medicina. Auferir da “boa reputação” entre os homens não gratifica nem, muito menos, sustenta a atividade profissional do médico.
    O “juramento” tornou-se uma vara de marmelo superegóica que vergasta o direito à remuneração pecuniária do médico. Ele intimida o médico na hora de cobrar pelo seu serviço.
    O mais atualizado Código de Ética Médica do Conselho Federal de Medicina – Resolução CFM nº 1.246/88 (3ª edição, Brasília: CMJ Editoração Eletrônica, 1996) – registra:
    “Art. 1º – A Medicina é uma profissão a serviço da saúde do ser humano e da coletividade e deve ser exercida sem discriminação de qualquer natureza.”
    A Medicina, portanto, é uma profissão: uma atividade de trabalho específico. Isso significa uma prestação de serviço pelo médico ao paciente, com a conseqüente retribuição deste para com a proficiência do médico, sob a forma de paga de honorários previamente estabelecidos. Tais honorários se combinam em função do ato médico exercido, do procedimento médico implantado e do tempo despendido pelo profissional para atender o paciente.
    Por conseguinte, o exercício da Medicina não é sacerdócio. Sim, porque o paciente ou a comunidade não sustentam vitaliciamente o médico nem arcam com as despesas de seu local de trabalho, tal como costumam fazer os fiéis, religiosamente, ao assumirem os encargos financeiros do templo e do seu sacerdote.
    O exercício da Medicina não é filantropia, uma vez que rarissimamente o médico é rico o bastante para empregar seus cabedais em uma atividade de puro amor à humanidade. Até muito pelo contrário, o médico desliga-se de quaisquer outras atividades que lhe possam dar remuneração pecuniária, para se dedicar ao exercício diuturno da absorvente e desgastante prática clínica.
    Medicina também não é obra de caridade – a mera compaixão espúria pelo desvalimento da condição humana nem a piedosa comiseração pelas dores, pelos achaques e pelas doenças que a biologia inflige ao homem. Além disso, a caridade quase sempre é recurso terapêutico insuficiente e ineficaz para aliviar ou reverter a situação da doença.
    Medicina também não é material de consumo produzido em série, disponível nas prateleiras dos postos de saúde, comandados pelos burocratas confortavelmente instalados em arejados gabinetes. Ali permanecem eles, lidando com suas fichas e seus dados epidemiológicos, por detrás da linha de frente do atendimento ao doente, de olho nos custos que lhes revela a tela de seus computadores.
    Com freqüência, os custos e a escassez das verbas determinam a disfuncionalidade dos serviços públicos, acarretando o inadequado atendimento à saúde da população.
    “A serviço da saúde do ser humano” implica considerar que a prática médica é um trabalho de acolhimento, de diagnóstico a ser elaborado e que determina o emprego de recursos terapêuticos em uma tentativa de ensaio e erro, até ocorrer o acerto.
    Medicina não é ciência de precisão. Não é mecânica nem eletrônica nem mecatrônica nem, muito menos, matemática. Não é atividade de resultados adrede garantidos. Pelo contrário: é a arte de acionar gradativamente os meios terapêuticos disponíveis, que facilitarão os processos biológicos com o objetivo de restaurar a saúde e, até, eventualmente, obter a cura da danação da doença.
    Medicina é, antes de tudo, uma atividade estocástica, na qual a competência e a diligência do médico, por meio do ato médico e dos procedimentos por ele escolhidos, segundo sua responsabilidade e competência, trabalham para diminuir o grau de aleatoriedade implícito na evolução da doença.
    Assim, a Medicina é apropinquativa, aprochegativa, assintótica, jamais absoluta ou definitiva.
    O exercício da clínica é um procedimento de acompanhamento, de solicitude, no qual a pessoa do médico coloca em jogo, a favor da recuperação da saúde do paciente, seus poderosos dotes. Dessa forma, o bom profissional tem uma série de atitudes a tomar, que são essenciais para o sucesso de seu trabalho. Entre essas atitudes, o médico:
    • Acolhe a confiança do paciente em sua pessoa digna e empenhada.
    • Assume a grande responsabilidade pelo tratamento do cliente, tratamento este muitas vezes de resultado incerto.
    • Coloca a serviço do cliente todo seu enorme cabedal de estudos, de conhecimentos e sua avultada experiência clínica no trato de dezenas ou mesmo de centenas de casos semelhantes.
    • Estimula o desejo do paciente de se recuperar. Este é um poderoso fator de cura trazido pelo doente.
    • Infunde confiança ao paciente, a quem esclarecerá cada etapa evolutiva de sua patologia.
    • Estabelece com o paciente uma relação de solidariedade, de afeto e de empenho no seu restabelecimento, suprindo as incertezas do doente.
    O médico exerce a difícil função de ser o máximo denominador comum sobre o qual desaba o terror da incerteza humana. Ele tornou-se o receptor das angústias, das superstições, dos desacertos prévios e dos fantásticos temores da morte que arreganha suas tristes fauces ao doente.
    Coletor de imponderáveis e de incompletudes, o médico é o condutor do processo clínico terapêutico, que se habilitou a exercer sua árdua função.
    A Medicina é a difícil arte de o médico administrar a incerteza da evolução da doença, não podendo ele aparentar insegurança.
    Embora necessite de dados, de escalas, de fichas e de estatísticas, além das técnicas, dos exames e das sofisticações maquínicas ou eletrônicas, a Medicina é arte humanística por excelência. No entanto, ela só viceja na abundância de meios assistenciais e terapêuticos disponíveis a tempo e a hora, como acontece nos grandes centros de excelência médica.
    A Medicina se estiola na pobreza, torna-se esquálida na miséria, vira arremedo na precariedade da inconstância de meios mal administrados, sob inconseqüentes fluxos de poderes políticos. É por isso que não há Medicina de qualidade onde varejam as prateleiras desabastecidas, as salas de cirurgia sem gaze, os postos de saúde sem termômetro, o pronto-socorro sem categute ou os serviços sucateados e desmoralizados.
    Medicina é profissão preciosa e delicada. Sobretudo, valiosa: todos querem os benefícios trazidos a sua saúde pela Medicina de Qualidade.
    O Código de Ética Médica dispõe ainda sobre algumas normas que nos interessam hoje e sempre.
    “Art. 7º – O médico deve exercer a profissão com autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços profissionais a quem ele não deseje, salvo na ausência de outro médico, em casos de urgência, ou quando sua negativa possa trazer danos irreversíveis ao paciente.
    Art. 8º – O médico não pode, em qualquer circunstância ou sob qualquer pretexto, renunciar à sua liberdade profissional, devendo evitar que quaisquer restrições ou imposições possam prejudicar a eficácia e correção de seu trabalho.
    Art. 9º – A Medicina não pode, em qualquer circunstância ou de qualquer forma, ser exercida como comércio.” (Destaques nossos).
    Os artigos 7º e 8º são seguidos por apodos adversativos que logo causam dissonância cognitiva no espírito de quem quer que os leia.
    O artigo 9º é de uma imprecisão estonteante. Trata a palavra “comércio” com um preconceito que não mais se justifica.
    Em um mundo capitalista, o comércio de tudo – de bens, de produtos, de serviços – é absolutamente legítimo e, sobretudo, desejável. Não existe Medicina de graça, por mais que a sociedade brasileira se entusiasme por serviços de saúde sem pagamento, prestados com a maior boa vontade. Assim como não existe almoço grátis. Alguém está pagando. A superestrutura que tomou o comando da Medicina acaba induzindo o “rico” esculápio a achar que é ele quem deve arcar com o ônus da assistência médica da população.
    Como a Medicina deixou-se capturar nessa armadilha, colocando o médico como um profissional que deve sempre doar-se, sem exigir a contrapartida que todo comércio entre os seres humanos implica?
    Médico não é como quer ainda o imaginário comum: um deus onipotente doador universal de sangue e de remédios.
    Mas é o artigo 10 aquele que causa escândalo, uma vez que os órgãos que comandam a Medicina estão todos contra o que o artigo reza:
    “Art. 10 – O trabalho do médico não pode ser explorado por terceiros com objetivos de lucro, finalidade política ou religiosa.” (Destaques nossos).
    Os governos, o Ministério, os benquistos planos de saúde, as prefeituras, as clínicas precárias, todos exploram o trabalho médico e lucram com ele. E quem os coíbe?
    O disposto no artigo 23 deveria ser cumprido:
    [É direito do médico:]
    “Art. 23 – Recusar-se a exercer sua profissão em instituição pública ou privada onde as condições de trabalho não sejam dignas ou possam prejudicar o paciente.” (Destaques nossos).
    Também inserido no Capítulo II – Direitos do Médico, o artigo 24 é o próprio paradoxo. Ele começa bem:
    “Art. 24 – Suspender suas atividades, individual ou coletivamente, quando a instituição pública ou privada para a qual trabalhe não oferecer condições mínimas para o exercício profissional ou não o remunerar condignamente, ressalvadas as situações de urgência e emergência, devendo comunicar imediatamente sua decisão ao Conselho Regional de Medicina”. (Destaques nossos).
    O que seriam “condições mínimas”? E, já entortando o raciocínio, o que significa “não remunerar condignamente”? São expressões que, em um texto normativo, carecem de objetividade.
    Quais seriam as condições mínimas para o exercício da Medicina, e o que seria uma remuneração condigna?
    Qual é a instituição pública ou privada que está interessada em “remunerar condignamente” o médico prestador de serviços clínicos e terapêuticos? Seria interessante saber quais são elas e onde se encontram.
    Quanto é, em reais, em moeda nacional, a quantia correspondente à remuneração adequada e condigna? Quem faz o preço? Qual é o montante a ser praticado?
    A parte final do artigo 24 torce e distorce toda a força de negociação de que trata a primeira parte do dispositivo, ao introduzir, após a vírgula, a expressão “ressalvadas as situações de urgência e emergência”. Embora o disposto no artigo, como técnica, esteja correto, uma vez que é natural que um dispositivo de lei estabeleça o princípio geral e as exceções, a impressão que fica é a de que há um paradoxo.
    Caberá ao médico estabelecer quais são essas situações de urgência e de emergência?
    O desejável e até imprescindível Código de Ética de nossa preciosa profissão padece de indecisões, de imprecisões, de vacilações, de paradoxos e de incongruências. Aos vacilos, somam-se as ambigüidades e as duplas mensagens, algumas delas verdadeiramente desacorçoantes para os jovens médicos expostos a condições turbilhonantes no exercício da Medicina. O Código ajuda e é esse o seu objetivo.
    Seguir o Código de Ética Médica parece tão convoluto e impossível quanto seguir uma religião qualquer: o fiel está sempre em falta perante um ordenador maior, superexigente, situado no excelso campo da impossibilidade de ser contentado pelo praticante.
    A ética, tão decente e tão necessária, na maior parte das vezes é cobrada da parte mais fraca: o profissional médico. Nossos órgãos encarregados de zelar pela ética, ao que tudo indica, não têm poder de exigir a sua observância em mão dupla, em comércio lícito, decente e explícito. Parece que o poder das organizações sobrepuja os órgãos normativos. O poder político, tão volúvel e móbil, desconhece sanções. O poder econômico prevalece sobre tudo o mais. O dinheiro, magno ordenador das relações de permuta entre os homens, infelizmente desconhece a Medicina e dela passa longe.
    Ao médico cabe esgrimir contra as armadilhas, fugir da prática clínica, refugiando-se em um escaninho qualquer, ou viver uma vida kafkiana, sujeito, a qualquer momento, a ver-se metido n’O processo.
    A Medicina já foi mais risonha e franca. Sua prática era mais salutar. Além disso, desfrutava de bom conceito e de prestígio na sociedade brasileira. Como foi que a classe médica se deixou decair tanto?
    Não me perguntem, que eu sei a resposta.
    A Verdade não agrada a quase ninguém!
    O conjunto de órgãos e de dispositivos de informação que até recentemente denominávamos “imprensa” cresceu, diversificou-se, tornou-se múltiplo em meios e intrusivo com sua onipresença.
    Se, nos anos 60, Macluhan decifrava O meio é a mensagem, hoje sabemos que a mídia se comporta como se fosse a verdade, a luz, a crença e a vida, para milhões de pessoas perdidas no cipoal desencaixado de informações que elas, as pessoas, são incapazes de hierarquizar.
    A mídia é o quarto poder. Já a imprensa o era. Executivo. Legislativo. Judiciário. Mídia.
    O quinto poder provém, em grande parte, da mídia. É o sistema do star, do expoente dotado de uma habilidade operativa qualquer, hipertrofiada ao máximo. É o poder do espetáculo.
    O sexto poder deriva da esquisita necessidade de 80% da humanidade de criar deuses e religiões.
    O sétimo poder insinua-se como uma nova política ecológica, visando a preservar o planeta e garantir a sustentabilidade da vida no futuro. Este, o poder ainda mais fraco, por estar em um estádio incipiente.
    O oitavo poder reina soberano sobre todos os outros demais. O poder econômico, associado ao poderio financeiro, utiliza despudoradamente seu magno agente de intermediação – o “menino-dinheiro” – para sobrepujar, controlar, oprimir, submeter e comandar todos os demais poderes.
    Mesmo o conjunto de poderes derivados da vida política carece de potência para fazer frente ao poder econômico e financeiro. A mídia é sua graciosa e gentil serventuária.
    Sua principal característica é poder imiscuir-se em todos os lugares, em todos os campos do saber, presente que está aos acontecimentos, capturando-os em imagens faiscantes, apresentadas muitas vezes de forma ultra-rápida em videoclipe. Acompanha as imagens um relato pertinente, mas quase sempre superficial, oferecido como verdade absoluta.
    Mesmo em jornais ou em revistas, os temas, tão interessantes quase sempre, são tratados com a ligeireza e a espetaculosidade da pasteurização jornalística.
    A mídia opera o milagre moderno. Ela captura a dura contundência rude do REAL, seja ele as coisas brutas da natureza, seja os conflitos nas relações que entre si estabelecem os homens, seja os vagidos que decorrem da endogeneidade e da biologia, e os processa tudo e todos. Ela, a maga poderosa mídia, prestidigitadora que é, transforma todo o real e qualquer realidade em imagens. O mundo imagético é exibido incessantemente, criando um espetáculo fascinante que nos hipnotiza e nos remete a uma dimensão de faz-de-conta.
    Se, para cinco bilhões de seres humanos, a sobrevida se passa no chão duro onde se quebram as pedras e se lança à terra a semente para garantir o almoço de agora e o jantar de logo mais, estando todos metidos na árdua dimensão do real de suas pobres existências, a mídia comete um by-pass, faz um atalho, cria um shunt entre o real e o imaginário.
    Se o real dá a comida, o imagético oferece a delícia da imagem completa e esplendorosa. Diz-se atalho porque uma antiga instância segunda tem sido cada vez mais escanteada: trata-se da dimensão simbólica do psiquismo humano, desprezado como velharia de que quase mais não se necessita. Logo o simbólico, que nos deu tanto: a neurose, a culpa, a poesia, a literatura, a noção de decência, as boas maneiras, a ética, as leis, os códigos, a estrutura emocional de nossa constituição psíquica, o arcabouço de nossas relações humanas, a arte, a dignidade e o anseio de transcendência.
    A mídia nos oferece um mundo pronto, como se já não fosse mais necessário o longo e valioso processo de elaboração simbólica.
    Ela nos seduz com a oferta de tudo bom, bonito, rápido, novo e barato. Em profusão infinita. Ela nos trapaceia, exibindo a imagem como sendo um valor maior do que a realidade.
    Muitos, tolos e jovens, que a vêem e a ela se expõem, compram-na como boa mercadoria de marca.
    A mídia utiliza uma serviçal em seus domínios. A publicidade tem por função anunciar as novidades, os avanços tão ou nem tanto positivos, induzindo a venda de rato como se fosse lebre ou lançando uma moda que roda. A publicidade libera e arromba os costumes. E não assume nenhuma responsabilidade pelas eventuais conseqüências danosas que isso acarreta.
    A propaganda possui insidiosa função: ela se esforça por perverter a real necessidade humana, deslocando o alimento ou o produto que supre tal necessidade para o campo do desejo idealizado. Assim, cria neonecessidades espúrias.
    A invasão incessante da mídia na vida e na subjetividade das pessoas vem-se constituindo o principal campo de exposição e de contato dos jovens com a realidade. Para muitos, aquilo parco, apressado e editado que os meios de comunicação exibem, tem-se tornado o único meio de pensar. Pensa-se pouco hoje. Pensamentos ralos. Indignos do excelente trabalho dos sábios e dos pensadores que nos deixaram o acervo da ainda melhor máquina de pensar, que são os livros.
    A mídia não tem compromisso com a verdade histórica. Também não se interessa pelos destinos do ser humano. A ela só interessa o telespectador, o assinante e o consumidor. Tanto é assim, que parece que ela se devota a derruir nossas referências e nossos valores. Tudo deve ser eternamente relativizado, tal qual uma mixórdia na grade de programação ou exposto cambalachiosamente em banca de jornal.
    Posta-se distante da necessidade que todos temos de edificar nossa existência terrena sobre bases mais consistentes. Tantas vezes ela exibe objetos, que se tornaram disponíveis no mercado ainda ontem e que ela apresenta como sendo capazes de nos acarretar satisfação plena, juventude e encontros sensacionais. Ela também não se interessa pelo bem-estar da pessoa nem muito menos pelo ideal de ser o que se quer vir a ser. Não. Ela engana o indivíduo, ao lhe propor que o que ele deve querer já está pronto, fabricado e custa cada vez mais barato, pois está em promoção permanente.
    A imprensa e a mídia se oferecem como modernas substitutas das valiosas fontes de sabedoria de outrora. Isso decorre do fato de que a mídia se ergueu sobre o altar do culto ao objeto de consumo descartável. Sexo rápido, sem compromisso. Velhice como estorvo. Autoridade a ser desconcordada e desqualificada. Referência a ser ultrapassada. Desejo como sendo sempre legítimo, a ser de pronto realizado. Excessos a serem cometidos a todo momento e de qualquer jeito. O contato com o outro ser humano a ser consumido como uma relação fugaz. Já não há mais falta, carência, insuficiência, infortúnio ou mesmo morte. Há sempre um objeto novo, capaz de obturar o vazio de um eu narcísico murcho, que apenas se sustenta na volúpia de uma navegação internética compulsiva.
    A novela na mídia sempre renova as esperanças de um dia cada um estacionar, esponjoso, na deliciosa poça do amor. Aquele: arrebatador, verdadeiro, absoluto, perfeito. Incrível, por ser inexistente, e impossível, por implicar o envolvimento com o outro tão ávido e tão insuficiente quanto o primeiro. É assim que a mídia torna impotente todos os nossos amores.
    O governo se propõe a oferecer saúde para 183 milhões de habitantes, despendendo menos de 40 bilhões de reais. Uma tutaméia!
    Ao se buscar desesperadamente uma solução esperta, criaram-se os planos de saúde que se tornaram, em poucos anos, exemplo de ganância esquizoparanóide e de má gestão de recursos. Após décadas de desengano, a classe médica percebe que não há nem intenção nem honestidade em pagar preço atualizado, remunerativo, pelo seu trabalho.
    Quer-se coagir o médico a não propor a seu paciente o melhor e o mais avançado tratamento, naturalmente o mais caro. Coíbem-se a arte interpretativa e a capacidade resolutiva na prática médica. Coarcta-se sua independência de julgamento clínico. Inibe-se seu progresso como profissional de ponta. Impõe-se um conflito ético ao médico, ao subjugá-lo a exigências e a restrições em um sistema de serviços anacrônicos. O médico perde, assim, sua condição de diretor arguto de prescrição daquilo – ato, procedimento, recurso – que é o melhor para o seu paciente.
    Muitos planos de saúde, infelizmente, não respeitam o médico nem o paciente nem a Medicina. Apenas se fecham em defesa de seus interesses. É estarrecedor constatar que médicos trabalham com remuneração vil, desvalorizada, comprometendo seriamente a qualidade da assistência prestada.
    Verifica-se que a lei do ato médico é combatida por paramédicos, profissionais de extração recente em disciplinas ainda imaturas quanto à especificidade de seu desempenho. Essas disciplinas que vicejam nas bordas da Medicina.
    À complexidade crescente do conhecimento e da instrumentação médica se opõe a singela simplificação de propostas de intervenção doces, meigas, softs, lights, quase sempre raiando o efeito placebo, que se oferecem como “alternativas”.
    Médico não é “operário da saúde”, “companheiro de trabalho”, “mais um igual entre todos da equipe” ou “prestador de serviço relacionando-se com usuário ou com consumidor ou com portador de ficha”.
    Em nosso meio, o médico carece quase sempre de adequadas e dignas condições de trabalho. Raramente, percebe remuneração justa. Justa é aquela remuneração que deixa um resíduo, um lucro, que lhe permita viver condignamente, inserido na classe média da sociedade, capaz de fazer os investimentos imprescindíveis para sua habitação, mobilidade, lazer, para se reciclar, para participar de congressos e também da vida social.
    Remuneração justa é aquela que lhe permite também fazer uma consistente provisão para sua velhice.
    A todo instante, o médico é cobrado pelo paciente, que “quer ser ouvido”. No entanto, a situação insatisfatória, seja no serviço público, seja nos planos de saúde, não permite sejam destinados honorários dignos a essa parte de escuta tão humana da Medicina.
    Sabe-se que o pobre e destituído paciente brasileiro, 44% deles vivendo em favelas, e 60% deles percebendo um ou dois salários mínimos, tem no médico o único profissional de nível superior a quem pode ter acesso. Tantas vezes gratuito.
    Durante o intercurso da consulta, muitas vezes, o paciente cobra do médico respostas ou providências para necessidades que estão muito além das possibilidades da Medicina.
    Cariado e carenciado, o paciente brasileiro, de regra, é um sofredor que vem à consulta, despejando sobre o médico uma carga emocional altamente corrosiva. Isso tem tornado a profissão altamente estressante e insalubre.
    O médico não tem treinamento nem capacidade nem poderio para sanar fenômenos e carências sociais.
    É preciso, portanto, demonstrar de vez que uma boa gestão no SUS implica inexoravelmente o aporte constante, sustentado e confiável de recursos mais do que suficientes. A não ser assim, a ética, o médico, o paciente e o sistema de saúde no Brasil estarão acometidos da grave doença social e política que a todos assola.
    Atualmente, a mídia não se atém aos acontecimentos políticos, econômicos, sociais e esportivos. Com o desenvolvimento da tecnologia, o avanço das ciências e as descobertas no campo da Medicina, a imprensa dirige suas câmeras para essas áreas. Surge então um sério problema. Para a divulgação dos fatos e das descobertas científicas, sobretudo na área da saúde, há necessidade de que a pessoa encarregada de analisar e publicar a novidade tenha bom conhecimento do assunto. Caso contrário, há o risco de “desvio” de informação ou de informação incorreta ou incompleta. Se um profissional da comunicação publicar um informe científico incorreto, estará sujeito às sanções do código de ética da sua profissão, mas não da entidade sobre a qual publicou a notícia.
    Muitas vezes, o cientista ou o profissional da área de saúde receia que a imprensa não vá publicar exatamente o que ele disse ou o resultado de suas pesquisas. Ocorre que geralmente há necessidade de se condensar a notícia para que se possa manter no espaço dedicado àquela matéria. Nesse caso, é necessário, portanto, que o profissional da comunicação tenha conhecimentos sobre aquele assunto. É o que ocorre com os comentaristas de futebol. Só que estes têm público cativo maior e, se cometem um equívoco ao narrar um fato futebolístico, isso não trará conseqüências graves. Já é diferente em relação à notícia de uma descoberta científica, às propriedades de determinado medicamento ou de certo tratamento médico descoberto recentemente.
    Segundo Francisco Karam, professor de jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina, a área de saúde exige tratamento específico por parte da mídia. “Os profissionais da informação precisam se identificar, evitar ao máximo utilizar câmeras escondidas, não podem entrar no hospital e levar uma criança e mostrar que não existe segurança no local, devem respeitar a fonte sendo fiéis às suas declarações e, ao mesmo tempo, precisam denunciar aquilo que atente contra o bem público”.
    Ainda segundo o Professor Karam, “a informação qualificada e ética vem sendo debatida em muitos eventos porque parece que a informação é o elemento definidor das sociedades contemporâneas”.
    A informação permite que a pessoa faça escolhas, mantenham-se a par do que ocorre no mundo, toma conhecimento dos avanços da ciência.
    É visível, entretanto, a incapacidade da mídia de cumprir plenamente a sua função social. Basta observar as informações sobre biocências, sobre genética, que são assuntos atualmente muito discutidos, sobretudo em se tratando de produtos geneticamente modificados. Se se prestar atenção, podem-se encontrar noticiários que afirmam categoricamente algo que as pessoas da área sabem não ser exatamente daquela forma. Os leigos são então enganados. Dolosamente ou culposamente, não importa.
    Não se pode negar que a cobertura jornalística de descobertas científicas e tecnológicas é atividade absolutamente indispensável para a democratização do conhecimento. Essas notícias são a maneira que se tem de se saber o que ocorre no mundo das ciências. É verdade também que a linguagem das ciências, e mesmo da tecnologia, é uma linguagem própria, característica, e muitas vezes hermética para a maioria das pessoas. Daí a necessidade de um profissional de comunicação que tenha conhecimentos suficientes para transmitir as notícias sem lhe alterar o sentido.
    Às vezes, encontram-se noticiários sobre a área de saúde que demonstram falta de responsabilidade e de compromisso com a ética. O que constitui uma restrição ou uma limitação emitida pelo cientista é, muitas vezes, suprimido no texto jornalístico. Tal recurso visa a transformar uma notícia importante, mas com ressalvas, em um fato sensacional. Ou sensacionalista. As matérias sobre clonagem humana, células-tronco, transgenia são atualmente as que mais despertam a atenção da mídia na área das ciências. Na tecnologia, a mecatrônica – que leva à construção de robôs – é a grande curiosidade do momento.
    Portanto, a informação deve ser tratada com ética, com respeito à população, com qualidade e de forma que seja compreendida pelo público a que se dirige.
    É imperioso que a mídia adote a reflexão ética como uma necessidade cotidiana. Só assim ela poderá cumprir a sua função social – informar, denunciar, mostrar os avanços científicos, alertar a população sobre perigos de natureza diversa, divertir, instruir, entre outras.
    É preciso que a mídia desempenhe o seu papel de grande importância na sociedade sempre atrelada aos princípios estabelecidos pela ética.
    Nessa cruzada, a ética médica deve buscar a parceria da mídia como meio de divulgação da boa prática da Medicina. E, se tantas vezes, a mídia corresponde a essa expectativa, para alguns já transparece claro que a Medicina deve desenvolver seus próprios veículos de comunicação.

    Referência
    http://www.grupogices.hpg.ig.com.br/Karam.html