A História da Psicoterapia
Marco Aurélio Baggio
…E vivem os mortais de trocas mútuas.
Lucrécio
Psicoterapias são práticas milenares, mediante as quais um homem mais experiente acolhe as queixas existenciais de outro homem e procura indicar caminhos mais eficazes para solucionar a problemática do consulente.
Psicoterapia remonta a Antífon e sua arte de escapar da aflição. Para este sofista atuando por volta de 411 a.C. , a felicidade deriva de uma vida em harmonia consigo mesmo, usufruindo o sujeito de paz e serenidade, sendo capaz de evitar a perturbação e os incômodos desnecessários. Tal concórdia se obtém quando a pessoa consegue articular as muitas exigências e as múltiplas tensões impostas pelas circunstâncias da vida, superando-as e suplantando-as em atitudes e soluções argutas. Antífon submetia seus consulentes a um tratamento baseado na palavra, no verbo, exercendo sua influencia terapêutica mediante uma linguagem instigante e propositiva. Utilizava seu imenso poder de persuasão para inocular no psiquismo de seus felizes contemporâneos idéias novas e representações úteis que agiam beneficamente sobre o corpo e sobre a lógica dos impasses dos sofrimentos psíquicos. Utilizava os sonhos como forma de acesso aos encadeamentos intrapsiquicos. Seu talento de interprete das vivencias alheias visava, mediante o emprego da ironia, buscar o sentido que dá sustentação e inteireza ao individuo. Ajudava seus consulentes na melhor construção de si mesmo com respeito as virtudes reais, em um processo que levava à sabedoria.
Epícuro e Lucrécio são argutos pensadores que se basearam nas evidencias do que há de melhor humano entre nos.
Epíteto, romano, 50 d.C. – 127 d.C. escreveu o primeiro manual de psicoterapia: A Arte de Viver. Nele demonstra que é a razão a suprema retora da vida psíquica. Preconiza que cada um deve criar seu próprio mérito para com ele se autosustentar.
Hermes, na mitologia grega e Cherazade, na hagiografia árabe, tratam das evidencias da eficácia psicoterapeutica da palavra.
O maior psiquismo surgido na História da Humanidade, o verdadeiro criador do homem moderno, aquele cuja mente não conseguimos ir alem, William Shakespeare, disse, escreveu e dramatizou quase tudo o que se sabe sobre o poder terapêutico da linguagem em psicoterapia. Trezentos anos depois, Freud erigiu suas doutrinas, constituindo o corpo abstrato que se provou extremamente prático e eficaz acerca de como é e de como funciona o psiquismo humano, normal e neurótico.
Com Shakespeare, o personagem literário torna-se capaz de verbalizar seus afetos, suas emoções, seus conflitos, seus impasses, e, ao assim faze-lo perante uma platéia – ou um interlocutor silente e arguto – , torna-se capaz de escutar a si mesmo. Assume voz própria, pessoal, recriando-se e retomando o processo de crescimento interior, vindo logo a alcançar novas formas de consciência. É assim que o ator – cliente depara com o âmbito de sua verdadeira natureza, passa a assumir a realidade de sua vida imersa nas circunstancias nas quais elas se apresentam no mundo. Em Shakespeare, a vida é drama, e como tal, a realidade está sempre em mutação. Como tão bem ensinou Heráclito.
Baltasar Gracián, espanhol, 1601 – 1658, com sua A Arte da Prudência, emite 300 preceitos de grande argúcia e utilidade para nos orientar ao longo de nossas vidas.
Em psicoterapia a díade, a dupla psicoterapeuta – cliente, colocam-se empenhados no processo/circuito de acrescer e de edificar a personalidade/pessoalidade do consulente.
Sabe-se que só nos humanizados através da relação de boa qualidade com outros homens. Para tanto, o psicoterapeuta é um arguto metieta, equipado para trabalhar e para cuidar da edificação psicoexistencial do outro ser humano. O que se quer é empreender a hominização progressiva do sujeito. Para tanto, o processo psicoterápico busca incrementar a capacidade de introspecção do indivíduo, visando este arrancar-se da obscura escuridão dos internos endógenos para aquilo que logo se torna a luz da intelecção e a iluminação esplendorosa de sua consciência. Há um abismo sondável a ser ultrapassado entre o âmago kenômico – o vazio interno do ser humano, um nada anonadante no antro do ser-, e os seus desvairados e inalcançáveis ideais idealizados. É nesse gap, nesse vazio que intermedeia esse dois penhascos titânicos, que tem que ser preenchido pela vida humana em transcurso. Já disse, já afirmei: o ser humano é um buraco vazio, um tubo que implora por ser preenchido: uma boca voraz, devoradora do objeto, que devorado, cai num túnel digestório, meandroso e assimilativo/desassimilativo –seletivo-, culminando com a expelição dos resíduos por um malcheiroso ânus.
A psicoterapia tem por objetivo, por teleologia, fazer o cliente abraçar uma transcendência secular, laica, que contemple o sublime.
Sabe-se que, com extraordinária frequência, o homem tem em si seu maior inimigo.
A psicoterapia lida com nossas “crenças rachadas”, nossas incongruências e nossos paradoxos. Opera com a “doida salada” que provém de nossas escolhas e de nossas uniões incompatíveis. Cada vez mais, a psicoterapia utiliza os dados e os fenômenos provenientes da dimensão inconsciente do psiquismo, para diretamente instrumentar um EU autônomo que atua e faz efeito ao acontecer. Hoje, quando o mundo e a vida perdem sua aura de idealidade platônica e o inconsciente tem desgastado seu viés de incognicibilidade, o EU passa a gozar de um estatuto singular legitimo. Nele, no EU, há um espaço, uma ocasião para apreender o mundo das coisas e dos objetos, a fim de penetrar e inteligir seus muitos segredos.
Desde Antífon e Shakespeare, e mais recentemente, com Freud, Franz Alexander e Winnicott, o que se objetiva é a criação e o desenvolvimento de um EU interior em perpetua metamorfose e expansão constante. Se a vida não tem sentido adredemente determinado, faz-se sentido de vida ao se bem ou mau viver, em um mundo externo que insiste em se apresentar perenemente desarrumado e corrompido.
Se nosso mundo interno é um verdadeiro inferno, caldeirão freemente de tendências as mais desencontradas e, tendo nascido entre fezes e urina, sabendo que entre a criação e a queda há apenas um intervalo que nós chamamos ‘ nossa vida’, vive-se para desfrutar de momentos em que nós, homens, somos bufões donos de nossos fados.
Psicoterapia é o que vai permitir ao cliente passar a relativizar e a fluidificar aquilo tudo que acreditava e mantinha como sendo verdade absoluta. Em psicoterapia, logo se dissolvem as “certezas fajutas” trazidas como memes inoculados como verdades absolutas e incontestáveis no psiquismo do sujeito, desde a infância, na adolescência e mesmo na idade adulta, pelo grande Outro da sociedade. Logo, há um processo de desabssolutização do relativo. Junto, correlato, acontece a desilusão de suas ilusões e de suas pretenções irrealizáveis.
O cliente, a seguir, passa a desmisturar-se da meleca conglomerada daquilo tudo que comparece como um aglutinado indiferenciado em seu psiquismo.
O que dá estofo ao ser humano é a incorporação e a internalização de cultura humanística: conhecimentos esgrimidos de elevada qualidade. O psicoterapeuta posta-se como um sacerdote leigo, devotado a capacitar seu cliente a encarar e a atuar na realidade da vida e das coisas, tais como elas são.
A historia da psicoterapia é o relato de como, a partir de um núcleo inclito do verdadeiro si mesmo – Self – , âmago endógeno, xispa de luz da mesmidade da pessoa, esta passa a lidar com adequação e argúcia, com a dura, cruel e impávida realidade.
A vida enegrece em contato com a realidade. Viver é muito perigoso.
Toda psicoterapia tem por escopo, por objetivo,facilitar o desenvolvimento psicoafetivo do ser humano. É arte humana, ourivesaria humanística, mediante a qual obtém-se o desenvolvimento e expansão de um EU interior. Isso vai permitir ao sujeito tornar-se, no possível, comandante de seu destino, dono de seus fados, a partir do apuro de seu desejo, levando em conta, sempre, as vicissitudes de suas circunstâncias.
O que está fora do EU reduz-se à um mar de desventuras.
A natureza humana é a mesma em todas as épocas históricas e se apresenta como um EU implicado nas mesmas problemáticas, em uma conflitiva que é, ao mesmo tempo, lúdica, bélica, relacional que pouco varia.
Ao longo do século XX – século freudiano – mais de trezentas linhas, correntes, tendências, escolas, propostas oferecidas, cada qual, como sendo ‘ psicoterapia verdadeira’, por excelência, constatamos por nossa experiência, que todas elas não passam de ofertas de imanência. Isto é, cada narcisista autor se apega à um aspecto restrito do elefante psicoterapia e se enfuna em acreditar que está lidando com um todo. Não que dezenas dessas formulações de escolas careçam de pertinência. Falham em si autoenganar, ao pretender que descobriram o âmago do processo psicoterápico.
No século XXI, a história da psicoterapia registra que existe uma única psicoterapia. Ainda que composta de miríades, de centenas de peculiaridades, de vicissitudes e de especificidades. Sendo tão importante e cada vez mais procurada pela uma humanidade que tuge e muge em sofrimentos, o que nos espanta é o fato de que a psicoterapia ainda, não sei porque, não esta disponível para as multidões.
Sua História continua a ser escrita…