A doença na vida e obra de Machado de Assis: última parte
Confinado em Nova Friburgo para tratar-se de estafa e uma afecção intestinal, Machado confidenciou em correspondência a um colega de trabalho: “Vou caminhando a passos largos para uma tísica mesentérica”. Sofria ainda de um outro mal concomitante, ainda mais penoso para ele: “também os olhos lhe estavam doentes, interdizendo-lhe as leituras e o trabalho”. Seria apenas fantasia de um gastroenterologista inferir, nesse contexto, a possibilidade de uma doença inflamatória intestinal combinada à uveíte, afecção oftalmológica concomitante? Bem possível.
Depois dos três meses passados no interior do Rio de Janeiro, restabeleceu-se a saúde de Machado, robusteceu-se seu talento de escritor e despertou-se, afinal, sua verdadeira inspiração. A evolução já vinha se esboçando na sequência dos romances anteriores (Ressureição, A Mão e a Luva, Helena, Iaiá Garcia), mas a doença, o recolhimento e a perspectiva da morte aceleraram o processo e Mémórias Póstumas de Brás Cubas foi o primeiro fruto dessa nova fase.
O tema da loucura visitou-lhe inúmeras vezes o imaginário, em contos como “O alienista”, “A causa secreta”, “O espelho” e na verdadeira ovação ao desvario que é o romance Quincas Borba – “ao vencedor, as batatas!”.
“O delírio”, relato que vai desde a agonia de Brás Cubas à origem dos tempos, quando Pandora apresenta-lhe o desfile dos séculos, é uma espécie de samba-enredo surrealista que nem o mais criativo dos bufões ousaria compor. Dom Casmurro, aparentemente uma rara obra em que Machado nada pôs de autobiográfico, não trazia as indagações filosóficas de Brás Cubas e Quincas Borba, nem o tédio de Esaú e Jacó e do Memorial de Aires, mas, embora fosse o mais cotidiano dos seus livros, ressaltou ao limite a paranoia de Bentinho, obcecado pela suposta traição de Capitu.
Nos seus últimos tempos de vida, a doença intestinal recorrera, assim como a degeneração da vista. A estomatite aftosa crônica dera lugar a uma grande ulceração na língua, no primeiro momento atribuída às mordeduras decorrentes das crises epiléticas…, posteriormente, a um câncer. Morreu em sua casa do Cosme Velho às 3:45h da madrugada de 29 de setembro de 1908, cercado de amigos e admiradores. Cético, rejeitou a extrema unção, mas sua vida tão prolífica há de lhe ter mostrado que no embate entre a razão e o mistério da existência estava seu grande destino.
Referências
1. Pereira LM. Machado de Assis. 6a ed. São Paulo: Editora da USP; 1988
2. Machado C, Nikitin V. Exposição Machado de Assis no Museu da língua Portuguesa. São Paulo, 2008
3. Peregrino Jr. Doença e constituição de Machado de Assis. Rio de Janeiro, J Olympio; 1938
4. Pontes E. A vida contraditória de Machado de Assis. Rio de Janeiro, J Olympio, 1939